A manipulação ideológica do Capital: dos “benefícios” aos “salários emocionais” dos “colaboradores”

Num país anestesiado por uma permanente manipulação informativa, por um massivo desarmamento ideológico e por um desprezo generalizado pelos princípios, torna-se “natural” que acontecimentos tão dramáticos quanto intoleráveis[1]mereçam muito menos atenção e indignação do que, por exemplo, o último e rocambolesco episódio do nosso futebol. E enquanto os três “F” do regime fascista (“Fátima, Futebol e Fado”) regressam cada vez mais e em força, torna-se fácil ao Capital e aos seus pensadores e estrategas irem paulatinamente impondo as suas concepções ideológicas como forma de garantir e perpetuar a servidão de quem, de seu, só tem a força de trabalho. Até porque, entre os que pactuam com tais concepções, não as combatendo e até, por vezes, adoptando-as, estão, lastimavelmente, organizações, dirigentes políticos e pensadores que se dizem de “esquerda” e “amigos” dos trabalhadores.

A concepção dos trabalhadores como “colaboradores”

Tal é o caso da tentativa – adoptada até pelo próprio Presidente da República – de substituir o conceito de “trabalhadores” pelo de… “colaboradores”, buscando dissimular a natureza de classe, de poder, de um subordinante sobre um subordinado que caracteriza as relações de trabalho subordinado, negando assim o conflito de interesses a estas inerente, e procurando apresentar as empresas como comunidades com um bem e um fim comuns a todos os seus membros e onde não pode ou não deve haver lugar a quaisquer formas de luta.

Essa é a velha concepção do mundo das relações de trabalho própria da ideologia fascista e por isso mesmo o “Estatuto do Trabalho Nacional”[2] (datado de 1933 e uma tradução quase ipsis verbis da “Carta del Lavoro”, de Mussolini, de 1927) proclamava no seu art.º 11.º que “a propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma função social, em regime de cooperação económica e solidariedade” e, no seu célebre art.º 22.º, que “o trabalhador intelectual ou manual é colaborador nato da empresa onde exerça a sua actividade e é associado aos destinos dela pelo vínculo corporativo.”

E, coerentemente com esta negação da verdadeira qualidade de trabalhador subordinado e, também, de cidadão, substituindo-a pela de “colaborador nato da empresa”, o mesmo Estatuto consagrava ser “acto punível a suspensão ou perturbação das actividades económicas (…) pelos técnicos, empregados ou operários, com o fim de conseguir novas condições de trabalho ou quaisquer outros benefícios ou ainda de resistir a medidas de ordem superior conformes com as disposições legais”[3].

Em suma, o conceito ideológico de “colaborador” visou – na senda das ideias de Reinhard Höhn, jurista e general (Oberführer) do regime nazi, e o que elas implicam acerca da “integração do trabalhador na comunidade de produção e desempenho (Leistungsgemeinschaft) do povo no seu todo”[4] –, e visa ainda hoje, negar e erradicar a luta de classes da sociedade económica e da sociedade política em geral, conduzindo em linha recta à legitimação das técnicas da perseguição e punição dos que ousem reclamar, lutar e pôr em causa a ordem estabelecida e à pregação da obediência e do servilismo.

Com efeito, se o trabalhador é o tal “colaborador nato” da empresa, vinculado às suas decisões e destinos, é lógico que não seja admissível que ele proteste contra aquilo que considere injusto ou que se erga em defesa de melhores condições (salariais ou outras) de trabalho. E é assim que modernamente estas mesmas concepções de gestão são implementadas e impostas através de “ferramentas” como a utilização sistemática do assédio moral, o uso científico do medo e a passagem a todos os membros da organização da mensagem acerca daquilo que de profundamente negativo acontece aos que ousem, por exemplo, exercer os seus direitos e exigir o respeito patronal por eles.

Exemplos paradigmáticos disto mesmo são, e quase sempre sob a capa da exigência da plena e permanente “disponibilidade”, o desincentivo ou até a perseguição directa (seja pela discriminação em termos salariais e/ou em termos de carreira, seja pela sua inclusão em processos de despedimento ou de caducidade de contratos) das trabalhadoras e dos trabalhadores que ousem exercer os seus direitos de parentalidade (tais como o usufruto das respectivas licenças ou a reclamação das horas de aleitação ou do horário flexível) ou a adopção da prática de que todos os processos disciplinares instaurados visam sempre o despedimento dos trabalhadores, contando para isso com o discurso tradicional das dificuldades da empresa e – é preciso dizê-lo com frontalidade! – com a impunidade decorrente de uma gritante inacção, para não dizer mesmo cumplicidade, por parte da Inspecção e da Justiça do Trabalho, tantas vezes incapazes porque não sabem (ou não querem) compreender este tipo de fenómenos anti-jurídicos e anti-democráticos e contra eles reagir de forma minimamente eficaz.

É, pois, para procurar justificar e legitimar tudo isto e para tentar desarmar quem contra tal se deve erguer, a começar pelos próprios trabalhadores, que a ideologia capitalista, com os “recauchutamentos” trazidos pelas mais modernas concepções neo-liberais, vem paulatinamente procurando substituir, até na linguagem do dia-a-dia, o conceito de “trabalhador” pelo de “colaborador”…

A armadilha das “compensações e benefícios”

Mas outro dos conceitos que visa desarmar os trabalhadores e diminuir, senão mesmo inutilizar, ou até de todo lhes retirar os direitos que ainda vão estando formalmente consagrados, é o das “compensações e benefícios”[5], cada vez mais utilizado e até imposto, em substituição, precisamente, do conceito de “direitos”.

O objectivo é muito claro! Se alguma utilidade que haja sido atribuída ao trabalhador (seja a utilização de uma viatura ou de um computador para uso total, logo também pessoal, seja um seguro de saúde para o próprio e eventualmente para os seus familiares directos, etc.) pode ser classificado como um mero “benefício”, daí logo se tratam de retirar duas consequências: por um lado, ele decorre de um acto de magnanimidade, senão mesmo de caridade[6], da entidade patronal; por outro, tal como ele foi atribuído, também poderá ser retirado a qualquer altura, seja para “reduzir custos”, seja para sancionar o trabalhador em causa (diminuindo-lhe drasticamente a sua real remuneração), seja, enfim, para tornar mais fáceis e rentáveis negócios de venda ou de outra transmissão de titularidade da empresa ou estabelecimento onde o trabalhador preste actividade. Neste último caso, contornando as disposições da lei, quer nacional[7], quer comunitária[8], que estabelecem que, numa situação destas, os trabalhadores mantêm todos os seus direitos e o novo dono é obrigado a respeitá-los. Tudo isto sob o argumento, melhor, sob o pretexto de que se tratando, não de direitos, mas de meros benefícios ou compensações, eles podem afinal “cair” com a transmissão da empresa e o novo dono – que assim até poderá pagar um preço superior por aquela – ou até simplesmente uma nova administração não estariam vinculados a mantê-los.

Este tipo de situações é completamente contrário à lei, já que, de acordo com o Código do Trabalho[9], todas as utilidades atribuídas ao trabalhador como contrapartida da prestação da sua actividade, com carácter minimamente regular e periódico e com natureza obrigatória (porque resultantes, designadamente, de um ajuste contratual) integram a retribuição do trabalhador e esta não pode ser diminuída[10], pelo que a sua retirada, frequentemente consumada através da invocação do referido conceito de mero benefício, consubstancia uma absoluta ilegalidade e mesmo uma contra-ordenação muito grave[11]. Mas, mais uma vez, com o terreno jurídico-ideológico suficientemente amaciado com a dita teoria dos “benefícios e regalias”, tudo isto passa frequente e lastimavelmente impune.

A última falácia: o “salário emocional”

Mas eis que, qual “pedra angular” deste edifício ideológico, surge agora a famigerada teoria do “salário emocional”. Este conceito reporta-se a condições normalmente não directamente pecuniárias e apresentadas aos trabalhadores como “bónus” (atribuídos e retirados por meros actos de gestão e por decisão unilateral da empresa), mas que visam obter uma acrescida e completa disponibilidade dos mesmos trabalhadores, a qual, nalguns casos, passa pela completa vinculação da pessoa ao trabalho e pela liquidação de toda a sua vida pessoal, familiar e social.

Claro que esta teoria é “vendida” com um invólucro mais ou menos atraente e mais ou menos “científico”, do estilo “trabalhadores bem motivados trabalham mais e melhor”, “conjunto de factores como flexibilidade, humanismo e responsabilidade social”, “vantagem de um pacote compensatório estimulador do empenhamento na prestação de actividade e no alinhamento com os interesses da organização”, e/ou “conjunto de elementos que ajudam o trabalhador a crescer pessoal e profissionalmente”. 

Porém, a realidade nua e crua que toda esta roupagem visa encobrir é o facto de o patrão alcançar com isto consideráveis vantagens (disponibilidade permanente do trabalhador, 24h por dia, 7 dias por semana e nas férias, e trabalho suplementar não pago prestado informalmente e sem deixar rasto e sem qualquer contestação acerca da forma de actuar da gestão) sem ter que reconhecer e cumprir os seus inerentes deveres e, mais ainda, sem aumentar e até “emagrecendo” os respectivos custos salariais. E se, nalguns casos, essa componente dita “emocional” até tem alguma natureza pecuniária tangível (como é o caso, por exemplo, de um seguro de saúde), mas sempre apresentada como algo precária e susceptível de ser unilateralmente retirada a todo o momento, e/ou confessadamente vinculados a objectivos de produtividade (como viagens ou financiamento de programas de formação graduada ou pós-graduada), estamos mesmo a chegar ao ponto de salários emocionais de mero “penacho”, como seja um cargo com um título razoavelmente pomposo, mas sem nenhuma expressão material, seja de conteúdo funcional e de nível de responsabilidades, seja, sobretudo, de natureza salarial[12].

É que com papas e bolos (leia-se, salários emocionais) se enganam (e se amarram e se exploram) os tolos. E, sobretudo, e uma vez mais, porque o principal objectivo desta enorme (mas intencional e até, pelo menos nalguns casos, bem elaborada) mistificação ideológica é o de conseguir desmobilizar e individualizar os trabalhadores, desincentivá-los de exercerem e defenderem os seus direitos, e aceitarem, como “colaboradores” obedientes e alinhados, desempenhar tranquilamente a sua função de, quais “vacas contentes”, produzirem mais leite a troco de nada…

Para mais num país como o nosso, em que os trabalhadores trabalham bem mais horas e recebem salários bem mais baixos[13] do que os seus congéneres europeus, estas teorias dos “colaboradores”, dos “benefícios” e dos “salários emocionais” não passam de instrumentos de imposição de uma exploração e de uma opressão ainda maiores sobre quem trabalha, e devem ser permanentemente e firmemente denunciados e combatidos como tal!

António Garcia Pereira


[1] Como o da morte de um idoso numa maca de ambulância à porta de um hospital, após horas de espera e com a burocrática proibição do seu transporte para outro hospital ou da cobarde e brutal agressão de uma mulher, com sucessivos pontapés na cabeça quando já estava prostrada no solo, pelo “valente” do seu ex-companheiro.

[2] Aprovado pelo Dec.-Lei n.º 23048, de 23/09/33.

[3] N.º 2 do art.º 9.º.

[4] Ver Reinhard Höhn, Reich, Grossraum, Grossmacht, Darmstadt, Wittich, 1942.

[5] Até há já diversas empresas que criam unidades orgânicas e cargos com a pomposa denominação de “Regalias e Benefícios”!

[6] Uma mera “liberalidade”, como se designa em linguagem jurídica.

[7] Art.º 285, n.º 1 do Código do Trabalho.

[8] Directiva n.º 2001/23/CE, do Conselho, de 12 de Março.

[9] Na senda do que já dizia o art.º 82.º da “velha” Lei Geral do Trabalho (Dec.-Lei n.º 49.408, de 24/11/69).

[10] Art.º 129, n.º 1, al. d) do Código do Trabalho.

[11] Art.º 129, n.º 3 do Código do Trabalho.

[12] Do mesmo passo que os antigamente denominados “Departamento” ou “Secção” de Pessoal passaram a ter denominações cada vez mais ostentatórias como “Recursos Humanos”, “Capital Humano” e até “Pessoas e Cultura”!…

[13] Segundo os dados da mais que insuspeita OCDE, revelados num artigo do Jornal Expresso do passado dia 10/08/23, Portugal é o 3.º país dos 27 da União Europeia em que, em média, os trabalhadores mais horas de trabalho prestam (40,2h), muito acima da média da Zona Euro (36,4h) e da U.E. no seu conjunto (37,1h). Por outro lado, segundo os dados divulgados pelo INE em Abril de 2023, em 2021 mais de metade dos trabalhadores portugueses ganhava menos de 1050€ brutos mensais. E enquanto um estudo do Instituto Sindical Europeu de 2018 revelou que Portugal era um dos 9 países da U.E. onde os trabalhadores passaram a ganhar menos do que antes da crise, um estudo do Eurostat, relativo a 2018, mostra que, quando calculado em PPS – a unidade de medida que elimina os diferentes níveis de preço entre os diversos países – o salário/hora dos trabalhadores portugueses era dos mais baixos da U.E., sendo apenas precedido pelos dos trabalhadores búlgaros! E segundo um recentíssimo estudo da empresa analista de Mercados, IPSOS, os salários de metade dos trabalhadores portugueses não chegam para pagar as suas despesas mensais. 

2 comentários a “A manipulação ideológica do Capital: dos “benefícios” aos “salários emocionais” dos “colaboradores””

  1. SILVIA RODRIGUES JARDIM diz:

    Excelente texto: objetivo, diteto, preciso, bem referendado e emocional na medida certa. Urgente também!

  2. SILVIA RODRIGUES JARDIM diz:

    Excelente texto: objetivo, diteto, preciso, bem referendado e emocional na medida certa. Urgente também!

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