Algumas (poucas) vozes bem tinham tentado avisar durante a pandemia da covid-19 que a utilização massiva das técnicas do medo e do choque, bem como a aceitação de lógicas fascizantes, como a de que os fins justificam os meios ou a de que temos é que obedecer e não que pensar, iriam ter consequências, e consequências muito graves, para a nossa vida em sociedade.
E ainda que as novas configurações dessa mesma vida – por mais brutais, anti-democráticas e até absurdas que elas fossem – seriam sempre apresentadas e impostas como “o novo normal”, relativamente ao qual não haveria alternativa.
Agora que as “notícias” sobre a guerra na Ucrânia substituíram nessa “função social” as relativas à pandemia (e isto, ainda que estejam actualmente a morrer muito mais pessoas da covid-19 do que há 1 ano atrás…), tornou-se evidente que tais previsões, não obstante o desprezo e o silenciamento a que os seus autores foram votados, se revelaram, afinal e infelizmente, em absoluto acertadas.
E, todavia, o nevoeiro adensa-se e gruda-se-nos à pele…
Ditadura sanitária em preparação
O anteprojecto de lei de emergência sanitária, apresentado recentemente pelo governo PS, dito de esquerda, e com maioria absoluta no Parlamento, constitui um autêntico projecto, não de emergência, mas de ditadura sanitária, prevendo-se que graves restrições de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos sejam decretadas sem intervenção de um juiz e por mera decisão das entidades governamentais. A completa governamentalização desta questão está, aliás, bem patente quando – passados 48 anos sobre o 25 de Abril! – o governo passa a poder decretar, sozinho, sem qualquer intervenção do Parlamento ou do Presidente da República, e por mera Resolução do Conselho de Ministros, os primeiros 30 dias de emergência. E as privações e restrições de liberdades podem não ter um prazo limite para terminarem, pelo que este regime pode ser, até, tecnicamente perpétuo.
Que bela “Democracia” este nevoeiro oculta!…
A (in)Justiça que temos
A mesma Justiça que permitiu a fuga do banqueiro João Rendeiro – embora o Conselho Superior da Magistratura (CSM), logo se apressasse a proclamar que, claro, não existiriam quaisquer culpas dos juízes dos vários processos… – agora abandona-o como se ele fosse um trapo e o Estado português não tivesse quaisquer responsabilidades nas condições de prisão em que esse arguido se encontrava e nas circunstâncias que terão conduzido à sua morte.
Entretanto, e por outro lado, segundo foi publicamente anunciado, PS e PSD já se teriam entendido para, de forma concertada, indicarem para juiz do Tribunal Constitucional um troglodita jurídico e político, Almeida e Costa (filho de um antigo ministro da Justiça do regime fascista), o qual, enquanto assistente da Faculdade de Direito de Coimbra, e entre outras reaccionárias diatribes, se opunha freneticamente à permissão legal do aborto em caso de violação sob o extraordinário e medieval argumento de que “os casos de gravidez provenientes de violação (são) muito raros”, em abono dos suas teses anti-despenalização do aborto, as opiniões do “médico da morte” Fred Emil Mecklenburg, confessadamente baseadas nas horríveis experiências feitas pelos nazis em prisioneiras de campos de concentração. Como vai um personagem destes fiscalizar o respeito pela Constituição da República Portuguesa? Sobre esta questão conheço uma única posição crítica formal, a da Associação Portuguesa das Mulheres Juristas (APMJ).
Sucedem-se as práticas e as decisões judiciais mais absurdas e até absolutamente ilegais e inconstitucionais, e o mesmo inquietante nevoeiro de silenciamento e de encobrimento se mantém, e até se intensifica. Não se ouve uma palavra de crítica à forma como são recrutados, formados, avaliados e promovidos ou sancionados os juízes e os magistrados do Ministério Público, nem se escuta o mais leve murmúrio, muito menos de auto-crítica, por parte de organismos com responsabilidade directa nessas matérias, como o Centro de Estudos Judiciários (CEJ), o CSM ou o Ministério da Justiça.
Este soma, aliás, mais uma “proeza” ao seu já extenso e lastimável currículo: a lei relativa à conservação dos “metadados” das comunicações[1] transpusera para a ordem jurídica portuguesa uma Directiva Comunitária[2], mas o Tribunal de Justiça da União Europeia, por Acórdão de 08/04/2014, declarara, e bem, a invalidade da dita Directiva, por violação manifesta do princípio da proporcionalidade à luz da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. E a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) portuguesa emitira, entretanto, duas deliberações considerando que a dita Lei era claramente violadora de artigos quer da Carta dos Direitos Fundamentais[3], quer da Constituição da República[4].
Era, assim, mais que evidente a inconstitucionalidade da dita Lei e era mais que previsível que, mais tarde ou mais cedo, ela seria suscitada (como o foi pela Provedora) e declarada (pelo Tribunal Constitucional).
Ora, a Provedora de Justiça alertou o governo disso mesmo, mas a então Ministra da Justiça, Van Dunem, com a arrogância intelectual e política dos que se julgam acima das leis e superiores aos comuns mortais, recusou promover a adopção de alterações à lei que permitissem sanar a referida inconstitucionalidade.
Apenas quando o Tribunal Constitucional[5], justamente declara, com força obrigatória geral, a patente inconstitucionalidade da Lei é que “cai o Carmo e a Trindade”, com os policias e os serviços de informações a lastimarem-se por, pelos vistos, não saberem fazer investigação ou apuramento de informação sem ser com leis inconstitucionais…
E o que diz, sobre tão relevante matéria, o Presidente da República, que jurou respeitar e fazer respeitar a Constituição[6]? Ao estilo Presidente de uma qualquer “república das bananas”, proclama que se a Constituição é “muito fechada”, então que se consigam “fórmulas cada vez mais flexíveis”, ou seja, que se mude a Constituição!?…
Entretanto, e uma vez mais para a Comunicação Social consumir e divulgar, a Procuradora-Geral da República logo apresentou um requerimento de arguição de nulidade do Acórdão, para o qual não tem, de acordo com a Lei e a Constituição, qualquer legitimidade ou fundamento. Se tivesse sido apresentado por um cidadão representado por Advogado, isso acarretaria uma pesada condenação em custas para o primeiro, e decerto, para o segundo, um processo disciplinar na Ordem por litigar contra legem.
E assim, também na Justiça, parece impenetrável este denso nevoeiro que a cobre.
A TAP – uma montanha de ilegalidades e incompetências…
Entretanto, a TAP acumula, e de forma cada vez mais gritante, ilegalidades e incompetências. Do ponto de vista da gestão de pessoal, e sob o pretexto da reestruturação, a TAP pôs na rua centenas de trabalhadores que lhe fazem agora tremenda falta para assegurar a efectiva retoma da actividade.
Depois de um processo de saídas feito com o mais deplorável assédio moral e com ameaças de despedimento (que só o governo e a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) não viram), a TAP, contando com o prestimoso apoio da consultora BCG e da grande sociedade de advogados SRS, consumou o despedimento colectivo de dezenas de resistentes à pressão e à chantagem, dos quais, entretanto, um número considerável obteve, por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, a suspensão judicial dos despedimentos.
E o que faz a Administração da TAP, presidida por Christine Ourmières-Widene? Não reintegra esses trabalhadores (por exemplo, excluindo ostensivamente do planeamento de voos os pilotos que foram reintegrados por decisão judicial) e destrata outros com décadas de experiência e empenho, dizendo-lhes que “não têm lugar na organização” e substituindo-os por muito bem remunerados “oui-monsieurs”, cuja principal qualidade parece ser a de dizer sempre que sim à Presidente. Sem capacidade de resposta para a mais que necessária recuperação, a TAP cancela voos (desde logo por falta de tripulantes) e não utiliza cerca de 100 (!?) “slots” por dia. E como estes dados são demonstrativos da total incompetência e prepotência, vá de tentar encontrar bodes expiatórios da sua divulgação e perseguir os “suspeitos” com processos disciplinares visando o despedimento.
As direcções e estruturas intermédias de gestão estão em grande medida esvaziadas de qualquer capacidade de decisão. A derrocada organizativa é de tal ordem que a Administração da TAP se arrogou apresentar aos pilotos uma “proposta” que, sob a promessa de correcção de violações do próprio Acordo de Emergência (!?), implicaria a cedência de folgas em meses críticos, o pagamento do trabalho extraordinário (absolutamente indispensável à operação face à notória falta de pilotos) com retribuições muitíssimo inferiores a 2019 e, mais grave que tudo, a redução dos períodos de descanso subsequentes a voos altamente cansativos no longo curso, questão esta particularmente grave por interferir, claramente, com a segurança de voo. Esta “proposta” provocatória foi peremptoriamente recusada em Assembleia Geral do Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil (SPAC) por 879 votos contra e 10 a favor!
É, pois, toda a operação de verão e a própria recuperação da TAP que, por incompetência e arrogância da Administração e da tutela, estão claramente em causa.
E, todavia, o mesmo inquietante e silencioso nevoeiro também se abate sobre esta gravíssima questão, como se ela não existisse e as respectivas consequências não se viessem abater sobre todos nós…
Comunicação ou Manipulação Social?
A nossa Comunicação Social, em especial as televisões, do mesmo passo que desprotege, discrimina ou ataca quem pensa e fala diferente, em particular sobre a guerra na Ucrânia[7], tratou, em geral, de forma absolutamente repugnante o assassinato da jornalista palestiniana e americana da Al Jazeera, Shireen Abu Akleh, de 51 anos.
Fê-lo começando por – tal como já fizera inicialmente o New York Times, mas de cuja posição recuou perante os protestos de muitos dos seus leitores – sem sequer referir a sua identificação e apresentando o ocorrido simplesmente como uma jornalista que morreu numa operação militar do exército de Israel. Como se ela não tivesse nome e como se não tivesse sido assassinada por um tiro certeiro na cabeça disparado por militares israelitas quando, com colete e capacete identificando-a como jornalista, cobria um raide contra o campo de refugiados de Jenine, no norte da Cisjordânia (território palestiniano ocupado por Israel desde 1967). Basta pensar como teria sido tratado por essa mesma comunicação social o caso de uma jornalista ocidental morta a tiro pelas tropas invasoras russas para se aquilatar da “isenção” e “imparcialidade” dessa “informação”[8]…
Porém, e de novo o mesmo opressivo e silencioso nevoeiro do pensamento dominante se abate sobre este crime e sobre os seus responsáveis…
Resistir, resistir sempre!
Todos estes silêncios – quantas vezes cometidos precisamente por quem se diz intelectualmente sério e isento, politicamente democrata e até de esquerda – envolvem-nos e asfixiam-nos cada vez mais e são eles que escancaram as portas aos mais perigosos e sinistros populismos e oportunismos. Mas aqueles que não dobramos a cerviz, que não cedemos ao poder do dinheiro e à força da ameaça e da violência, que não aceitamos que nos cortem a raiz ao pensamento, nós somos a resistência!
António Garcia Pereira
[1] Lei n.º 32/2008, de 17/07.
[2] A Directiva 2006/24/CE, de 15/03/2006.
[3] Art.º 52.º, n.º 1.
[4] Art.º 18.º, n.º 2.
[5] Pelo seu Acórdão n.º 268/2022, de 19 de Abril de 2022.
[6] Nos termos do art.º 127, n.º 3, da Constituição.
[7] Como os jornalistas Bruno de Carvalho e Miguel Szymanski, os oficiais generais Agostinho Costa, Carlos Branco e Raul Cunha e o professor Filipe Vasconcelos Romão.
[8] E, já agora, como se desde 2000, já não tivessem sido assassinados pelo executivo sionista quarenta e cinco jornalistas palestinianos, executados quando cobriam ataques militares contra populações palestinianas em regiões ocupadas por Israel.
Boa tarde António
O convite para a reunião de Lisboa da FRENTE AMPLA 25ABRIL já seguiu. Será próximo 26 Maio.
Um forte abraço
Alfredo Soares-Ferreira
Boa tarde António
Excelente Artigo.
Recordo que a nossa Reunião em Lisboa, passou de 19 para 26 de Maio, mesma hora e mesmo local.
Um forte abraço no m