A banalização do mal e o silêncio dos bons

O conceito da “banalidade do mal”, da autoria da filósofa judia, de origem alemã, Hannah Arendt, volta a ter hoje uma extrema actualidade, também entre nós.

No último texto que aqui publiquei – “Às costas da COVID-19” – procurei então analisar a forma como, em diferentes épocas, se foi edificando e consolidando o discurso, político e jurídico, legitimador de práticas e regimes ditatoriais.

No campo do Direito, essa dogmática – que, nas diferentes épocas, apareceu sempre com a aparência da “mudança” e da “modernidade”, mas também com a da sua pretensa “neutralidade” – sustenta e promove a expulsão (e não só do campo do Direito, mas de toda a sociedade em geral) das preocupações, valorações e juízos críticos de Ética e até da própria Justiça – apresentadas como estranhas e até prejudiciais à própria realidade das normas jurídicas – e na defesa crescente de que os fins (apresentados normalmente como os grandes, e indiscutíveis, desígnios nacionais) justificariam todos os meios, por mais inconstitucionais, injustos e brutais que eles sejam.

Salazar justificava a prisão e a tortura (que ele designava de “safanões a tempo nessas sinistras criaturas”) infligida pela Pide aos resistentes anti-fascistas  com o argumento de que “a Nação e o Ultramar não se discutem” e de aqueles não passavam de “agitadores profissionais” agindo ao serviço de “interesses inconfessáveis” que urgia silenciar e eliminar.

Assim como no III Reich o criador da sua teoria legitimadora, Carl Schmit, sustentava que o fundamento da validade das leis, por mais bárbaras que elas fossem (por exemplo, “legalizando” o genocídio e as brutalidades da Gestapo), não residia já em qualquer norma mas sim na força e na capacidade de decisão de quem detém o Poder e, por isso, podia fazer as leis que bem entendesse em nome de que elas eram necessárias para atingir os fins que proclamava como os superiores e legítimos interesses da comunidade.

Mas não é só do tempo do nazismo e do fascismo que já conhecemos este tipo de sinistras concepções. Como, infelizmente, decerto ainda bem nos recordamos, aquando do reinado da Tróica em Portugal, em nome do sacrossanto, indiscutível e indiscutido objectivo do combate ao défice e sob a invocação de uma alegada emergência financeira, valeu praticamente tudo, desde o abaixamento dos salários e o corte dos subsídios de férias e de Natal ao alongamento dos já extensíssimos (dos então já maiores de toda a União Europeia, relembre-se) tempos de trabalho e à restrição do acesso aos benefícios sociais (como os subsídios de desemprego e de doença, o rendimento social de inserção ou o complemento solidário para idosos), restrição essa que deles expulsou então centenas e centenas de milhares de portugueses, assim lançados na fome e na miséria.

E, como decerto se lembrarão também, a sociedade portuguesa, e a comunidade jurídica portuguesa em especial, nem sequer discutiram o que era afinal o chamado Memorando de Entendimento da Tróica, muito menos quis verificar que o mesmo não era nenhuma Fonte de Direito e assim aceitou servilmente, e até mesmo proclamou, que a Lei Fundamental do País, a Constituição da República, tinha de ser interpretada e aplicada em conformidade com o dito Memorando (e não o inverso…) pois – tal como proclamava a teoria jurídica nazi da autoria de Carl Schmitt – ela não podia mais ser uma “força de bloqueio” (lembram-se da tristemente célebre expressão de Cavaco?) ou um instrumento de criação de limites e entraves ao livre exercício do poder…

Dentro deste tipo de concepções, o respeito pelos princípios é substituído impositivamente pelo “pragmatismo”, que não passa afinal de um belo nome para o oportunismo. A valoração positiva ou negativa das leis e dos actos do governo e da Administração Pública é substituída pelo critério do mero atingimento das finalidades que eles se propõem. E, logo, o aumento brutal dos impostos sobre os parcos rendimentos de quem vive do seu trabalho ou de quem sobrevive com a sua magra reforma, ou o corte do pagamento seja dos complementos de reforma estabelecidos em contratação colectiva desde há décadas, seja das pensões devidas aos funcionários públicos por acidente em serviço ou doença profissional contraída também em serviço, se aumentam um pouco a receita ou diminuiem, mesmo que só ligeiramente, a despesa fiscal, logo são avaliados positivamente e considerados como uma boa solução legislativa, mesmo que ela viole direitos fundamentais, contrarie princípios constitucionais essenciais e consubstancie uma impiedosa brutalidade sobre quem é mais pobre, mais fraco e mails vulnerável. Desta forma, até no campo jurídico-constitucional, se instala a lógica de que “dos fracos não reza a História”…

Toda uma teoria é desenvolvida para procurar sustentar que os pobres são uns piegas, os desempregados uns mandriões que não querem é trabalhar e os velhos e doentes “gente a mais” que só consome recursos que fazem falta às outras gerações e que por isso mesmo deveria desaparecer o mais depressa possível deste Mundo. 

É evidente, também, que estas práticas, para se imporem mais rápida e eficazmente, precisam que não haja vozes críticas ou discordantes que perturbem todo este processo. E, por isso mesmo, a lógica que se vai sucessivamente impondo é a de isolar, abafar e, se isso não bastar, atacar e perseguir os críticos e os divergentes.

Primeiro, tratar-se-á de apresentar as ideias do pensamento político dominante como uma espécie de postulados, pretensamente de natureza técnica, designadamente económico-financeira, e por isso mesmo indiscutíveis. Depois, de “persuadir” os grandes meios de Comunicação Social de que têm uma espécie de “missão patriótica” a cumprir que é a de não perturbar, nem permitir que perturbem, a “unidade nacional” e os seus dirigentes políticos. E, finalmente, e se ainda assim restarem algumas vozes recalcitrantes, trata-se de as atacar, por todas as formas, mesmo as mais vis e soezes, da boçalidade e do puro insulto pessoal aos verdadeiros homicídios de carácter, tudo isto em nome, uma vez mais, da tal lógica nazi de que a legitimidade do fim de silenciar quem constitui um obstáculo ou empecilho para o Poder justifica afinal todos os meios usados para o eliminar.

Como facilmente se compreende, a partir daqui, tudo, ou praticamente tudo, começa a estar “justificado” e todas as críticas e divergências passam a estar “fundamentadamente” silenciadas, no meio de um amorfismo e de um “carneirismo” social permanentemente cultivados.

E, na verdade, todo este processo é ainda mais acelerado e aprofundado pela autêntica propaganda com que todos os dias somos bombardeados pelos grandes órgãos de comunicação de massa, com as televisões à cabeça, através da (des)informação, mas também das telenovelas e dos programas ditos de entretenimento. E que divulgam, pregam e favorecem continuamente o instantâneo, o imediato, o sound bite, o primarismo das emoções e dos sentimentos, o desprezo pela razão crítica, o individualismo mais feroz, em suma, o mesmo tipo de amorfismo social, ainda que mais sofisticado, que tão necessário era ao regime fascista e mil vezes repetido sob o estafado e achincalhante aforismo do “manda quem pode, obedece quem deve”.

Aos poucos e poucos, de uma forma (só) aparentemente “natural”, as maiores barbaridades vão-se banalizando e a capacidade de reacção perante elas amolecendo e embotando. A utopia de lutar por um mundo mais justo é permanentemente desprezada e atacada e a solidariedade para com o outro apresentada como, no mínimo, uma ingenuidade. A ideia e a convicção de que não é por aqui que devemos ir e de que é possível fazer mais e melhor continuamente combatida, desvalorizada e posta em causa pela pregação, até à náusea, da teoria de que “não há alternativa”.

E uma vez aqui chegados, facilmente se percebe também que já estamos hoje em plena “banalização do mal”, e isto mesmo, para não dizer sobretudo, no campo da Justiça.

Aqui, e cada vez mais, o que é preciso é apresentar números e estatísticas reveladores de que o número de processos pendentes está a diminuir e a eficiência no combate ao congestionamento processual está a aumentar.

Pouco importa se o número de processos entrados, sobretudo em jurisdições como a laboral, é menor porque os trabalhadores, devido às custas judiciais astronómicas, se vêm impossibilitados de aceder à Justiça. Se, nos próprios processos, que apesar de tudo decorrem, se ouvem testemunhas ao molhe (ou seja, às três e quatro simultaneamente), se não determinam quaisquer diligências para a descoberta da verdade simplesmente porque atrasam a agenda do Tribunal, se não se apura convenientemente a verdade dos factos e se, deste modo, se produzem decisões que pouco ou nada têm que ver com a realização efectiva e material da Justiça, não há problema algum porque, afinal… o que importa mesmo é a estatística de mais um processo “resolvido”!…

E agora, em tempo de pandemia, se, por exemplo, os Serviços Prisionais invocam não terem condições para transportar os arguidos às audiências de julgamento em que vão ser julgados, apesar de tais arguidos pretenderem exercer o seu basilar direito a estarem presentes nessas mesmas audiências, eis que alguns juízes, em nome de que “o que é preciso é fazer julgamento”, impõem a realização do mesmo, ainda que contra algumas das regras mais básicas de um Estado de Direito.

A tragicomédia de uma autêntica farsa levada muito recentemente a cabo num julgamento em Leiria é bem demonstrativa do ponto onde estamos a chegar. Com testemunhas em casa, sem se poder confirmar se estavam acompanhadas de quê ou de quem e sem se poder garantir que, ao contrário do que manda a lei, umas não se ouviam às outras; com contínuas interrupções das comunicações; com a perda total da imediação, da espontaneidade e, logo, da fidedignidade dessa prova; com os vários intervenientes processuais a não ouvirem e a não saberem se eram ouvidos (ao ponto de a própria Procuradora da República ter, por essas razões, sugerido o encerramento dessa sessão de julgamento). 

Porém, e apesar de tudo isto, a juíza-presidente – decerto sob a influência, para não dizer a pressão, do Conselho Superior da Magistratura, que quer é ver e apresentar a estatística dos julgamentos “realizados”!… – insistiu em levar por diante a mesma sessão. Naquelas circunstâncias, obviamente que a prova alegadamente produzida não pode merecer qualquer credibilidade, o real apuramento da verdade dos factos não se pôde fazer e a efectiva realização da Justiça material está afectada e inquinada à partida. Mas o que é que isso interessa àquelas almas, que querem é poder dizer que realizaram mais um julgamento?!

E a complacência perante este tipo de situações e também perante alguns casos de totalmente injustificados abusos e brutalidades policiais, coloca-nos a um passo de, um dia destes, estarmos placidamente a admitir que, se for para assegurar o “objectivo legítimo” da descoberta da localização do produto de um furto, não haja mal nenhum em, por exemplo, a polícia torturar o respectivo autor até ele confessar essa localização e assim se atingir o “fim legítimo” da recuperação dos objectos furtados…

Para onde vamos, pois, com esta progressiva “banalização do mal” e com o silencio cúmplice dos que se dizem bons?

E repare-se que estas ideias e estas práticas já existem e começam a espalhar-se de alto abaixo na nossa sociedade.

Ora, pareceria evidente – pois é isso que o artº 18º, nº 3 da Constituição, muito claramente, estabelece – que se as leis meramente restritivas dos direitos, liberdades e garantias não podem ter eficácia retroactiva, por maioria de razão, uma situação de completa anormalidade constitucional como é a do decretamento do estado de emergência não a pode ter também. Porém, no primeiro decreto (Decreto do P.R. nº 14-A/2020, de 18/3) do Presidente da República, este arrogou-se, no respectivo artº 7º, estabelecer essa mesma eficácia retroactiva, ratificando todas as medidas legislativas e administrativas adoptadas pelo governo até então! E, todavia, praticamente ninguém – com, que eu conheça, a única e honrosa excepção do Prof. Reis Novais – disse o que quer que fosse acerca deste atropelo da legalidade constitucional.

Agora, apesar de já não estarmos em anormalidade constitucional de emergência e de plenamente vigorar o princípio de que não pode haver suspensão (ou supressão) de direitos fundamentais e sendo ainda certo que a restrição dos mesmos só pode ser feita por lei, e lei da Assembleia da República (ou Decreto-Lei do governo, mas com autorização legislativa daquela), o Executivo adoptou, para vigorarem neste período, uma série de medidas restritivas através… de uma Resolução do Conselho de Ministros (a Resolução C.M. nº 33-A/2020, de 30/4) e depois de um simples Decreto Lei (nº 20/2020, de 1/5), mas sem autorização legislativa. Um dia destes, assistiremos a que, inclusive por uma Portaria ou mesmo por um simples despacho seja possível restringirem-se os direitos fundamentais dos cidadãos?!

Como era previsível, até já aparecem também uns “teóricos de emergência” a defender a tese do “estado de emergência administrativa”, com base no qual seria legítimo ao governo e às suas polícias imporem e praticarem condicionamentos de toda a ordem e até a supressão prática de direitos e liberdades dos cidadãos com o recurso, não à lei, muito menos à lei constitucional, mas a meros poderes administrativos ditos de emergência, com a transformação desse dito “estado administrativo de emergência” num verdadeiro estado de emergência permanente para os cidadãos, já que permanentes seriam os riscos e ameaças que o mesmo visaria combater.

E de novo com o argumento político e filosófico de base de que, face à pretensa legitimidade desses fins, todos os meios estariam afinal justificados.

Ora, tudo isto representa a instituição (que começou por ser relativamente subtil, mas que agora é, como se constata, cada vez mais descarada) de um sistema autocrático e ditatorial. E que importa estar pronto para se abater sobre nós, sobretudo quando as profundas e graves consequências económicas e sociais da COVID-19 se começarem a fazer sentir e houver que calar e reprimir quem lute e quem proteste contra as medidas então tomadas.

E os que se pretendem bons e justos permanecerão mudos e quedos?

António Garcia Pereira

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