Não apaguem a memória! Não passarão! (O Chega de André Ventura)

 

“Não apaguem a memória!” é o nome de um movimento cívico – hoje, Associação – que nasceu quando a Câmara Municipal de Lisboa, então presidida por João Soares, possibilitou que o edifício da Rua António Maria Cardoso, que fora a sede da Pide, fosse transformado num condomínio de luxo, sem que fosse minimamente preservada no local a memória de todos quantos haviam sido perseguidos, presos, torturados e até assassinados pela mesma Pide.

Ali acorreram então cidadãos indignados, que trataram de colocar uma placa alusiva ao facto de a Pide ter causado vítimas mortais na tarde do 25 de Abril de 1974 e naquele mesmo local. Essa acção cívica acabou com a detenção pela PSP de dois dos manifestantes, que foram depois levados a julgamento no Tribunal de Polícia e ali absolvidos.

O combate pela preservação da memória dos crimes contra a Liberdade e a Democracia e pela responsabilização dos respectivos autores foi sempre travado com particulares dificuldades.

Recordemos que o principal documento político-jurídico saído do 25 de Abril – o chamado “Programa do MFA” – previa explicitamente a manutenção da Pide nas colónias, como “polícia de informações militares”. E também que teve de ser a luta do povo português, nomeadamente em frente às cadeias do fascismo, como Caxias e Peniche (para forçar a libertação imediata de todos os presos políticos, sem qualquer distinção, ao contrário do que pretendia o próprio General Spínola), e em frente à sede da própria Pide (exigindo a prisão dos esbirros, deixados à solta durante todo o dia 25 de Abril), a determinar o curso dos acontecimentos.

Algum tempo mais tarde, assistir-se-ia mesmo ao lastimável espectáculo de os Tribunais Militares – onde os Juízes se mantiveram rigorosamente os mesmos que antes do 25 de Abril – absolverem, ou condenarem a penas irrisórias, os membros da Pide, chegando-se ao cúmulo de se invocarem como circunstâncias especialmente atenuantes e justificativas da benevolência das penas, as medalhas e condecorações que os referidos elementos da Pide tinham recebido durante o regime fascista por barbaridades cometidas, sobretudo na guerra colonial.

Os juízes e procuradores escolhidos a dedo pelo regime para integrarem os Tribunais Militares Especiais e os tristemente célebres Tribunais Plenários, actuando como fantoches nas mãos da Pide ao chancelarem as suas torturas e agressões (inclusive aos próprios advogados da defesa de presos políticos, como Manuel João da Palma Carlos e Artur Cunha Leal), escaparam afinal completamente impunes.

Entretanto, o responsável pelo metralhar da manifestação na tarde do próprio 25 de Abril (que causou as únicas vítimas mortais), o inspector Oscar Cardoso, não só escapou impune como viu em 1991 um acórdão do Supremo Tribunal Militar atribuir-lhe uma pensão vitalícia por “serviços excepcionais e relevantes”. E tendo requerido uma pensão por serviços relevantes prestados ao Estado, foi-lhe a mesma concedida, ao mesmo tempo que era recusada ao Capitão Salgueiro Maia.

O principal responsável pela operação de assassinato pela Pide do General Humberto Delgado, o Subdiretor-Geral Barbieri Cardoso, julgado à revelia, foi condenado a apenas quatro anos de prisão, tendo voltado a Portugal e aqui falecido tranquilamente em 1988, coisa similar tendo sucedido com o chefe da brigada assassina, o Inspector Rosa Casaco. E o agente António Joaquim Gomes da Rocha, o Pide que assassinou a tiro em Económicas (hoje, ISEG) o estudante de Direito José António Ribeiro Santos, na tarde de 12 de Outubro de 1972, também se pôde escapulir impune, sem nunca ter sido julgado e condenado pelo odioso crime que cometeu.

Ora, a verdade é que toda esta indulgência para com os mais odiosos elementos do regime fascista, praticada ao mais alto nível das instâncias estaduais, designadamente da própria Justiça, serviu e serve precisamente para se apagar da memória de todos, e muito em particular dos mais jovens, aquilo que foi realmente o regime fascista em Portugal e a situação de repressão e de perseguição, mas também de fome, de miséria, de desespero e de ausência de perspectivas a que ele conduziu.

Muitos não saberão sequer e outros já se terão porventura esquecido que, antes do 25 de Abril, as liberdades públicas, designadamente as de expressão e de associação, eram realmente inexistentes. Toda a actividade política sindical, associativa, cultural e até desportiva era fortemente vigiada e controlada pela Pide. Quaisquer reuniões ou manifestações eram frontalmente proibidas e violentamente reprimidas pela polícia de choque. E toda a informação e todas as formas de expressão cultural estavam sujeitas à censura prévia, a qual abrangia (e cortava tudo o que “cheirasse” a desconforme com o regime) emissões de rádio e de televisão, cinema, teatro, música, escrita, artes plásticas, proibindo-se e eliminando-se tudo o que pudesse ser considerado “contrário à moralidade e bons costumes”.

As enfermeiras, telefonistas e hospedeiras não podiam casar e as professoras do ensino primário tinham de ter autorização expressa do Ministério para tal. Todas as mulheres casadas necessitavam de autorização do marido para celebrar um contrato de trabalho, para se dedicarem a uma actividade económica ou simplesmente para saírem sozinhas do país.

Em nome do “tudo pela Nação, nada contra a Nação”, ou do “A Pátria não se discute”, ou ainda da tristemente célebre trilogia do “Deus, Pátria e Família”, tudo o que divergisse do padrão oficial do regime era apodado de ser “subversivo”, de estar “ao serviço de interesses inconfessáveis” e, logo, era censurado, perseguido, eliminado.

Dentro das concepções organicistas e institucionalistas próprias do corporativismo e do fascismo, a pessoa humana enquanto tal era totalmente desconsiderada e diluída no corpo social (a sociedade em geral), constituída este por um conjunto de “subcorpos” todos necessariamente dirigidos por um chefe, indiscutível e indiscutido (o marido e pai, na família; o professor, na escola; o padre, na igreja; o patrão, na empresa e, claro, em toda a sociedade, o Duce, o Führer ou o chefe do governo ou o “Sr. Presidente do Conselho”), relativamente ao qual se exigia e se praticava uma cega obediência.

Os papéis essenciais reservados às mulheres eram os três “k” da ideologia nazi – Kinder (criança), Küche (cozinha) e Kirche (igreja) – e o trabalho, que era social e politicamente apresentado como modelo e factor de realização, era o trabalho intensivo, de sol a sol, com muito pouca ou nenhuma incorporação tecnológica, e miseravelmente pago. 

Com trabalhadores “pobrezinhos, mas honrados”, Portugal tornou-se, sobretudo a partir do final dos anos 60, num autêntico paraíso para as grandes multinacionais, sobretudo as do sector de electrónica, que vinham então ao nosso país hiper-explorar a mão-de-obra, essencialmente feminina, muito eficiente, mas muito barata, das jovens trabalhadoras portuguesas. 

Para garantir “a paz e a tranquilidade” no mundo do trabalho, as empresas frequentemente solicitavam ou forneciam à Pide informações sobre os seus empregados ou candidatos a emprego. E os funcionários públicos, para poderem tomar posse e exercer funções, tinham forçosamente de assinar uma declaração, sob compromisso de honra, de que não se dedicavam a actividades subversivas.

Não havia Saúde nem Educação Superior para os mais pobres, cerca de 80% da população era analfabeta, muitas crianças iam descalças para a escola e nas grandes cidades, em particular Lisboa, multiplicavam-se os bairros de lata.

Porquê falar disto agora?

Importa relembrar tudo isto não apenas porque grande parte desta memória se está a perder e porque se ela não é transmitida às gerações mais novas, estas não a advinham, mas sobretudo para que saibamos reconhecer caminhos e personagens que a História já nos ensinou onde sempre conduzem.

É, na verdade, essa mesma História, que claramente nos mostra que quando as forças políticas, que se dizem revolucionárias ou até simplesmente de esquerda, abandonam todas e cada uma das tradicionais e principais bandeiras ou lutas dessa mesma esquerda (como a preocupação com os mais pobres e vulneráveis, só para dar um exemplo) são as forças, organizações e dirigentes políticos mais reaccionários da sociedade que delas se apropriam obtendo apoio popular – e é precisamente assim que todos os partidos de extrema-direita têm chegado ao poder na Europa nas últimas décadas, tal como já sucedera com Hitler e o Partido Nacional Socialista, nos anos 30.

Como também sabemos – ou tínhamos obrigação de saber… – que, num primeiro momento, quando se trata de granjear esse apoio popular e conseguir chegar ao Poder, esses lobos tratam de se esconder sob peles de cordeiro, proclamando o seu pretenso amor à Liberdade e à Democracia e jurando fidelidade e respeito pelos valores e princípios democráticos. Não raras vezes, e a par daquilo que chamam de “discurso anti-sistema”, assumem até poses “de Estado” e ares dialogantes, logo protestando, com ar muito ofendido, que nenhumas saudades têm da Ditadura ou do seu chefe e que são gente profundamente respeitadora dos outros, inclusive daqueles sectores que passam a vida a atacar, mais directa ou mais enviesadamente (dos imigrantes aos ciganos, dos pretos aos muçulmanos, passando, por exemplo, pelos beneficiários das prestações sociais). Mas, desenganem-se os incautos, assim que se apanha com algum poder nas mãos, esta gente rapidamente passa à acção e mostra a sua verdadeira natureza.

O Chega de André Ventura

É por tudo isto que todos já teremos compreendido que, decerto de acordo com as novas técnicas do seu marketing político, a táctica actual dos elementos do Chega é a de, a par com o tal “discurso anti-sistema” (como se não fizessem parte dele, e parte relevante, sobretudo em períodos de crise…), se apresentarem respeitadores dos direitos humanos, designadamente das minorias. Mas, à primeira escorregadela, logo desatam a proclamar que “a nossa cor de origem é branca” e que “a nossa raça é caucasiana” (frases de Diogo Pacheco Amorim), ao mesmo tempo que nunca pedem desculpa pelas atitudes mais racistas e miseráveis, como a do soez insulto feito contra a deputada Joacine Katar Moreira com um vergonhoso trocadilho entre a palavra descolonização e órgão genital feminino, pelo agora muito sorridente e “dialogante” deputado Pedro Frazão.

Não nos iludamos, pois: estamos perante uma organização de ideologia e de propostas fascistas ou fascizantes que defendem retrocessos civilizacionais atrozes (como o regresso a penas desumanas ou degradantes, tais como a prisão perpétua, a castração química ou a prisão para as mulheres que pratiquem o aborto), que sustenta não ter havido fascismo em Portugal e que o colonialismo português nunca existiu (tese defendida abertamente pelo membro do Chega, Gabriel Mithá Ribeiro, sendo inclusive o título de um livro de que é autor), que não esconde a sua admiração por Salazar e a sua obra, que vê como modelos de governação personagens como Trump e Bolsonaro, que perfilha e pratica a amizade política com organizações de extrema-direita (como a União Nacional de Marine Le Pen, em França, o Vox, em Espanha e a Lega, em Itália), que pratica a mobilização de elementos das polícias através de movimentos inorgânicos de extrema-direita (como o “Movimento Zero”), que se opõe ao casamento de pessoas do mesmo sexo, que afirma a sua completa aversão ao que chama de “marxismo cultural”, que se identifica plenamente com as violentas políticas anti-imigrantes dos governos da Polónia e da Hungria e dos partidos de extrema direita (respectivamente, PiS e Fidez), bem assim como as teorias xenófobas e racistas do chamado “perigo islâmico”.

Estamos, pois, perante uma organização que, por tudo isto, e não obstante uma ainda marcada ausência de homogeneidade ideológica entre os seus membros, se revela como perfilhando claramente a ideologia, os símbolos, os personagens essenciais e as palavras de ordem próprias do regime de antes do 25 de Abril (veja-se desde logo o slogan usado pelo Chega nas últimas eleições legislativas – “Deus, Pátria, Família e Trabalho”) e das ideologias em que esta se inspirou, designadamente o fascismo italiano, chegando ao ponto de, nas suas realizações, os seus membros, a começar pelo seu líder, fazerem e exibirem a saudação fascista.

E que, por isso mesmo, e face ao claramente estabelecido no art.º 46.º, n.º 3, da Constituição não deveria ter sido admitido e inscrito junto do Tribunal Constitucional. Mas, havendo-o sido, tendo podido concorrer a eleições e tendo nelas obtido o resultado que lhe permitiu eleger 12 deputados, há agora três pontos essenciais que não deverão ser nunca esquecidos:

1.º Mesmo em relação às ideias fascistas, ou fascizantes, a Constituição não proíbe a sua expressão, nem legitima a criação de qualquer delito de opinião. Ou seja, no exercício da liberdade de expressão podem até defender-se tais ideias fascistas, mas o que de todo não se pode é criar ou manter organizações destinadas a defendê-las e/ou a promovê-las.

2.º A melhor e mais eficaz forma de derrotar ideias injustas ou incorrectas não é de todo proibi-las policial ou administrativamente, mas sim sujeitá-las ao fogo da crítica firme e consequente – e é isso que se exige que agora os Democratas saibam fazer relativamente a Ventura e ao Chega, e a todas e a cada uma das suas acções e propostas.

3.º Se André Ventura invoca as regras democráticas para – aliás, da forma claramente provocatória de que todos nos apercebemos – propor para Vice-Presidente do Parlamento precisamente um personagem como Diogo Pacheco Amorim (um antigo quadro, quer do MIRN do general fascista Kaúlza de Arriaga, quer da organização terrorista de extrema-direita, o MDLP, que realizou vários atentados à bomba após o 25 de Abril, inclusive aquele que vitimou o Padre Max e a estudante Maria de Lurdes, em 3 de Abril de 1976), todos e cada um dos restantes 218 deputados têm o basilar direito democrático de não aprovar tal proposta, não permitindo assim a eleição de tal personagem. 

Travar o passo aos fascistas passa sobretudo por denunciar implacavelmente o oportunismo e a hipocrisia das suas posições (nomeadamente quanto ao seu auto-proclamado “rigor” e ao seu “combate às negociatas e à corrupção”) por pôr a nu a ausência de qualquer programa político e económico para o país e para o seu desenvolvimento e por denunciar e demonstrar a completa falta de fundamento dos seus chavões, como os da “metade do país a trabalhar para a outra metade”, os “imigrantes que consomem os nossos recursos e prestações sociais”, o “perigo islâmico” ou o “marxismo cultural”.

E assim (e só assim) atalharemos a tempo a demagogia e o populismo de quem só está à espera da ocasião ideal para largar de vez a pele de cordeiro e mostrar enfim os seus dentes de lobo… 

Assim, muito mais do que simplesmente repetir as palavras da heróica atitude da Passionária, “Não passarão!”, importa, acima de tudo, travar, em cada momento e em cada local, este combate. Ergam-se, pois, Democratas deste País!

António Garcia Pereira

Um comentário a “Não apaguem a memória! Não passarão! (O Chega de André Ventura)”

  1. Manuel Morais diz:

    Consciente de estar activamente a fazer a minha parte considero que todos os esforços e sacrificios são justificados tendo em conta o nobre objectivo…não passarão

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