Nas costas da Covid-19

Já se sabe, e desde há alguns dias, que se irá verificar no próximo dia 2 de Maio a substituição do estado de emergência pela declaração de calamidade. E porquê essa substituição? Porque as observações críticas e as resistências ao decretamento e renovações do estado de emergência tinham vindo a crescer, não obstante a sua quase generalizada ocultação e abafamento que a lógica do novo unanimismo social tem, desde o primeiro momento, procurado impor um pouco por toda a parte. Ora, apercebendo-se disso mesmo, logo habilmente Marcelo e Costa começaram a preparar o encerramento formal do dito estado de emergência e a sua substituição pela declaração do estado de calamidade, ao abrigo da Lei de Bases da Protecção Civil[1].

Deste modo, o Primeiro-Ministro – que já afirmara explicitamente, numa entrevista à SIC, que “mesmo sem estado de emergência, no tal estado de calamidade é possível impor de uma forma mais generalizada essas restrições” (da liberdade de deslocação das pessoas, nomeadamente) –, na passada sexta-feira, 24/4, afirmou mesmo e com toda a clareza o seguinte: “Independentemente do estado de emergência, há um conjunto de outros instrumentos legais, seja a legislação de saúde pública, seja a Lei de Bases da Protecção Civil, que permite manter normas de confinamento, de restrição à circulação ou de condicionamento no funcionamento de determinados serviços”.

A pergunta que se impõe

Mas se de facto isso é assim, a pergunta que se impunha, e impõe, colocar quer ao Presidente da República quer ao Primeiro-Ministro, é esta: então porque é que se foi para o decretamento (e duas prorrogações) do estado de emergência?

Creio que todos compreendemos hoje porque é que tal pergunta não foi nem é colocada. Simplesmente porque se sabe perfeitamente qual é a resposta mas ninguém quer assumir aberta a frontalmente a respectiva responsabilidade política – é que com a referida declaração de calamidade não era, e nem é, possível suspenderem-se ou suprimirem-se direitos laborais, sociais e políticos basilares (do direito à greve ao direito de resistência), e os quais nada têm que ver com o combate à COVID-19 nem com medidas de saúde pública que tal combate porventura imponha, mas têm directamente que ver com a “pandemia social” que já aí está em curso e que ameaça vir a assumir proporções catastróficas. Bastará pensar em que já temos hoje em regime de lay-off cerca de 1,3 milhão de trabalhadores, muitos dos quais não regressarão decerto ao trabalho, que 170 mil dos muitos mais trabalhadores ditos independentes já pediram o apoio social de 438,81€ (no máximo) por mês e que desde o início da pandemia já mais de 55.000 pessoas pediram ajuda alimentar urgente à Rede Alimentar de Emergência. E essa é que é a questão essencial!…

Quadro normativo

Na verdade, e quanto a medidas de verdadeiro combate à COVID-19, a já referenciada Lei de Bases da Protecção Civil consagra[2] que a declaração de calamidade pode estabelecer:

“a) A mobilização civil de pessoas por tempos determinados;

b) A fixação, por razões de segurança dos próprios ou das operações, de limites ou condicionamentos à circulação ou permanência de pessoas, outros seres vivos ou veículos;

c) A fixação de cercas sanitárias e da segurança;

d) A racionalização da utilização dos serviços públicos de transportes, comunicações e abastecimento de água e energia, bem como do consumo dos bens de primeira necessidade.”

Por seu turno, o artº 23º da mesma lei estipula que “a declaração da situação de calamidade é condição suficiente para legitimar o livre acesso dos agentes da protecção civil à propriedade privada, na área abrangida, bem como a utilização de recursos naturais ou energéticos privados”, e o artº 24º, nº 1, estatui mesmo que tal declaração (da situação de calamidade) “implica o reconhecimento da necessidade de requisitar temporariamente bens ou serviços, nomeadamente quanto à verificação da urgência e do interesse público nacional que fundamentaram a requisição.”

Por seu turno, o artº 14º da chamada Lei do Sistema de Vigilância em Saúde Pública[3] não apenas consagra o poder como impõe, e isto a todas as entidades que integram o sistema de vigilância em saúde pública, o dever de “observar os seguintes procedimentos de resposta:

  1. Determinar rapidamente as medidas de controlo directo necessário com vista a prevenir a propagação (…); 
  2. Assegurar uma ligação operacional directa com as autoridades de saúde e outros responsáveis, com o objectivo de aplicar as medidas de contenção e de controlo.”

E o artº 15º, no seu nº 1, atribui ao Director-Geral da Saúde a obrigação de elaborar e actualizar um plano de acção nacional de contingência para as epidemias, plano esse que, nos termos do nº 2, deve contemplar, entre outros procedimentos, os de “Prevenção e controlo a aplicar em todo o território nacional.”

Finalmente, a lei da requisição civil[4] – que o governo do Sr. Costa tanto tem gostado de aplicar a professores, enfermeiros e estivadores em greve, mas se recusa ostensivamente a aplicar aos SAMS e aos seus responsáveis, por exemplo!… – compreende “o conjunto de medidas determinadas pelo governo necessárias para em circunstâncias particularmente graves se assegurar o regular funcionamento dos serviços essenciais de interesse público ou de sectores vitais da economia nacional, podendo abranger a requisição de pessoas e de bens.”[5]

Qual a diferença, então?

O que é que todo este amplíssimo quadro normativo permite, define e decide a actuação, do ponto de vista sanitária e de combate à pandemia? Como se vê, praticamente, senão mesmo tudo!

Mas o que é que, afinal, ele não permite, e foi isso que se visou com o decretamento do estado de emergência, e não se quer agora reconhecer?

Esse muito lato quadro jurídico-legal não permite nem possibilita não apenas a já referida supressão de direitos sociais, políticos e laborais dos cidadãos como também a sucessiva imposição de uma lógica e de um conjunto de práticas securitárias e autoritárias, que à sombra do estado de emergência se foram desenvolvendo, sempre tendo por falsa, mas aparentemente bondosa justificação a sua pretensa necessidade para combater a COVID-19.

Assim, as regras relativas ao confinamento geográfico e aos condicionamentos às deslocações de cidadãos – mesmo que agora os cientistas estejam a chegar à conclusão de que a grande parte das contaminações ocorre em espaços fechados, como as próprias casas, os lares e as próprias instituições de saúde… – foram sendo transformadas em contínuas operações STOP da PSP e da GNR, com interrogatórios policiescos aos condutores e até revistas às viaturas totalmente fora do respectivo quadro legal (o ainda não revogado Código de Processo Penal). E às musculadas – tão musculadas que quase ridículas, não fora a gravidade do assunto – investidas policiais por causa da assistência a concertos nas varandas, seguem-se actos da mais cobarde e injustificável brutalidade policial como aquele de que foram vítimas dois jovens do Lar de São Martinho, em Coimbra.

E não, estas coisas não são meramente pontuais nem sucedem por acaso, mas antes pela passividade dos que assistem e nada fazem, a verdade é que se vão tornando “normais”.

Localização e controlo

Por outro lado, quando já foi publicamente anunciado que a Comissão Europeia está a preparar, juntamente com nove operadoras de telemóveis, um mecanismo de geo-localização dos cidadãos e, mais do que isso, de geo-controlo das pessoas com quem eles contactam e dos locais a que se deslocam, e quando também se sabe que já há países (como a China) em que tal dispositivo foi imposto (sendo obrigatório para se sair de casa e classificando os cidadãos por cores, dando-lhes acessos distintos) e ainda que na União Europeia – sendo ela recomendada pela própria Comissão – há já vários governos que ansiosamente salivam pela iminente produção dessa aplicação (app), o governo do Sr. Costa remete-se ao completo silêncio e nada esclarece do que também neste campo está a preparar e até já estará a fazer, como se, enquanto chefe máximo do governo, não tivesse contas a prestar aos cidadãos em nome dos quais exerce o poder.

Tal app – em cuja criação especialistas em desvios e tráficos de dados, como são a Google e a Apple, estarão também a colaborar – uma vez instalada no telemóvel de um novo doente infectado possibilitará à entidade gestora (seja ela quem for) e a todos os que a ela possam ou venham a aceder (como hackers, polícias e serviços de informações) identificar em acto seguido todos os cidadãos com quem ele se cruzou, registando todas as movimentações de todos os utilizadores.

E claro que, sob o eterno argumento nazi de que a suposta bondade dos fins poderia justificar toda a sorte de meios, por mais desproporcionados, desadequados, violentos e até bárbaros que eles sejam, esta ferramenta, de aparentemente voluntária, como é anunciada, já está a ser defendida pelos ideólogos do sistema como um elemento cuja utilização deve ser coercivamente imposta por só assim se poder garantir o retorno, em segurança sanitária, à actividade económica.

E quem não dispõe de telemóvel que suporte esta aplicação – como sucederá com grande parte dos nossos velhos – então é muito simples: como “o mundo mudou e nós temos que mudar” e “quem não se adapta, fica para trás e morre”, até se “justificará” que esses nossos concidadãos fiquem o resto das suas vidas impedidos de sair à rua, isto é, sejam vítimas de uma, chocante e totalmente inaceitável embora, espécie de prisão domiciliária perpétua. 

Deste modo, o estado de emergência até pode e vai chegar agora formalmente ao fim e ser entretanto substituído pela declaração do estado de calamidade, mas a verdade é que as medidas e as lógicas que, à sombra do primeiro e com o “científico” isolamento e abafamento – imposto em nome da sacrossanta “unidade nacional” – de todas as vozes críticas sobre elas, se foram impondo na prática, vieram para ficar e nada nos garante, a não ser que nos levantemos resolutamente contra elas, que elas venham a desaparecer.

Novas formas, velhos princípios

Até porque está já também em marcha redobrada uma outra e sinistra construção teórica, que, no seu expoente máximo, já conhecemos da Alemanha do III Reich e do seu principal ideólogo no campo do Direito e da Justiça, Carl Schmidt, cujas teses haveriam de ser retomadas por todos os regimes ditatoriais, e designadamente no tempo de George Bush por outro ideólogo da barbárie, chamado Antonin Scalia, para procurar justificar as violações sistemáticas de direitos humanos, as prisões arbitrárias e, sobretudo, a tortura, nomeadamente nas sinistras prisões de Abu Ghraib e de Guantánamo.

Esta pretensamente “nova dogmática” jurídica, política e social, embora revestida sempre de vestes de “modernidade”, consiste, afinal e desde logo, na ostensiva e assumida expulsão  da sociedade e em especial do mundo do Direito, em nome da pretensa “neutralidade” deste, de todas as concepções e valorações da Justiça e da Ética (consideradas estranhas à realidade normativa) e na afirmação crescente de que os fins (designadamente os políticos, económicos e financeiros, convenientemente travestidos de “grandes desígnios nacionais”, assim definidos pelo “grande chefe”) justificam todos os meios, por mais injustos, brutais, ilegais e inconstitucionais que eles sejam. E, logo, para atingir uma dada finalidade apresentada como legítima, valerá mesmo tudo.

Ao ponto de hoje em dia, a pretexto da necessidade do despacho dos processos, haver juízes a quererem e a impor a realização de julgamentos criminais sem a presença dos arguidos (quando estes têm o direito elementar de estarem presentes em audiência) e de os advogados que a tal se opõem serem considerados e até publicamente apresentados como empecilhos à realização da Justiça. É exactamente assim que os princípios democráticos e civilizacionais mais basilares vão sendo embotados, esvaziados e, por fim, destruídos.

Assente na ideia de que todo o Direito é situacional e momentâneo, Schmitt construiu a teoria jurídica legitimadora do nazismo, de acordo com a qual o fundamento da validade do Direito já não está sequer em qualquer norma, mas sim no monopólio decisório de que é titular a autoridade executiva máxima (o Governo ou, no caso do III Reich, o próprio Führer). A Constituição deixa de ser concebida como um instrumento de criação de limites jurídicos ao exercício do Poder e a fonte da legitimação passa a ser simplesmente a autoridade estatal, a qual “para criar Direito não precisa de ter razão” e pode assim, em nome dos “interesses superiores” que alegadamente personifica e representa, tornear e até suspender a própria Ordem Jurídica e os seus princípios e direitos mais básicos.

São, em todo o seu esplendor, as tristemente célebres teorias das auctoritas non veritas facit legem” (a autoridade, não a verdade, faz a lei), ou seja, de que todas as normas e todas as medidas emanadas da referida autoridade executiva máxima são legítimas apenas por dela provirem e de que todo o Direito é legítimo, e até indiscutível, simplesmente pelo facto de que foi formalmente aprovado e posto a vigorar.

E assim sendo, logo se defende também o silenciamento, a perseguição e punição de todos os comportamentos sociais e políticos considerados como susceptíveis de porem de alguma forma em causa a ordem política e social vigente e a referida autoridade máxima. E se instiga o desprezo e até a perseguição da pobreza e da doença, bem como dos movimentos de resistência, de todos os activismos sociais e, até, dos simplesmente divergentes, tudo isto na lógica, já brilhantemente denunciada por Chomski, de que quem se preocupa e quando se preocupa é logo acusado de ser “político”, subversivo ou até “vermelho”.

Se conhecêssemos e reflectíssemos sobre a História, decerto saberíamos que sempre foi, e ainda hoje é, desta forma até aparentemente suave e tranquila (pelo menos, ao início) que, sob vestes “democráticas” e “legalistas”, se foram construindo proto-fascismos de várias matrizes.

Podemos ignorar esta realidade e lavar as mãos como Pilatos ou podemos, como cidadãos activos e conscientes, erguermo-nos e combatermos contra ela, e vencê-la.

Lutemos, pois, contra esta “nova ordem” que se está a pretender criar e consolidar antes que acordemos em cima de baionetas e seja então tarde demais!…

António Garcia Pereira


[1] Lei nº 27/2006, de 3/7/06.

[2] Artº 21º, nº 2.

[3] Lei nº 81/2009, de 21/8.

[4] Dec. Lei nº 637/74, de 20/11.

[5] De acordo com o seu artº 1º.

5 comentários a “Nas costas da Covid-19”

  1. Alder Sérgio Marujo Martins diz:

    Gostaria também de saber a resposta a questão colocada pela Sra. Ana Pereira.

  2. Ana Pereira diz:

    Onde está a Ordem de Advogados face a estas prepotências do Governo e do Presidente da República, pois segundo o artigo 19 da Constituição da República Portuguesa – da Suspensão do exercício de direitos” “não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição”.

    Ou seja, só e na condição de prévia declaração de Estado de Emergência, segundo o artigo 19 da CRP, nos termos, condições e limites previstos e regulados na Lei n.º 44/86, de 30 de Setembro, é que os os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos poderão ser objeto de limitação por banda do Estado e das suas forças policiais.

    Portanto, tem jurídica e legalmente de se questionar: com que base e fundamentos jurídicos e com que meios legais, no presente caso, por uma mera declaração de Estado de Calamidade – da Lei n.º 27/2006, de 3 de Julho, que Aprova a Lei de Bases da Protecção Civil -, portanto que serve apenas e tão somente para enquadrar atuações da Prevenção Civil, em matérias de acidentes, catástrofes e outros eventos anormais de âmbito local ou regional, como o que serviu no presente a este Governo Socialista, pode permitir-se que as polícias restrinjam movimentos e liberdades de pessoas e mercadorias, confinem idosos à força em casa e se detenham pessoas na via pública, sob o pretexto da prática de pretensos ilícitos de Desobediência?

    Ora, como é bom de ver e se pode bem perceber, a actuação das polícias e do Governo limitando, restringindo e limitando os direitos de liberdade de circulação das pessoas é abusiva, Ilegal e Inconstituciona!

    Perante estes escancarados abusos policiais, temos de perguntar:

    Será o povo português assim tão capacho que possa aceitar vive sob a pata destes autoritários, seus tiques de autoritarismo e prepotência, atrevendo-se impunemente a exibir que estão acima da Lei e da própria Constituição da República?

    E, a Assembleia da República, que se diz representar o Povo, a Democracia e a Constituição da República, perante este atentado vergonhoso à Constituição e aos direitos dos cidadãos, cala-se e come como parva?

    Eu concluo, estamos numa Tugulândia governada por manhosos e prepotentes esquerdistas perante um povo fraco e capacho.

  3. Ana Pereira diz:

    E que poderá fazer um cidadão para se defender deste estado policial?
    Agradeço antecipadamente a sua resposta.

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