“Nós mulheres protegemos os malandros” (por Anabela Ferreira)

domestic violenceViolência  é violência e uma vítima nunca é culpada. Nem está a pedir ser violentada ou sofrer qualquer abuso físico e/ou psicológico.

Seja  homem seja mulher.

Vamos contar histórias de vítimas reais. Para que elas saibam que não estão sozinhas e têm voz contra o incontável número de vezes que silenciaram. Por medo e por vergonha. A humilhação foi para estas mulheres uma segunda pele durante muitos anos.

Porque todos os dias acontece mais um caso.

Porque nos importamos, vamos contar as suas histórias.

Lamentamos estar em 2016 e ainda ter de gritar um assunto que é antes de mais um retrocesso para a Humanidade.

Estas são histórias de mulheres que um dia se libertaram. Queremos pensar que para todas as vitimas esse dia de libertação, mesmo que tardio, possa  chegar.

Maya Angelou sobre coragem e ultrapassar os demónios

“There is nothing quite so tragic as a young cynic, because it means the person has gone from knowing nothing to believing nothing.”

“Não existe nada mais trágico que um cínico porque significa que a pessoa passou da ignorância para acreditar em nada” Maya Angelou

“Não grites mãe”, implorava ainda menino agarrado às pernas da mãe enquanto esta leva bofetadas do pai.

“Basta” gritava a mãe chorando, cheia de dores, provocadas pelos socos, tentando separar o filho, já crescido, que para a defender tentava bater no pai, de novo bêbado. Tentava tudo para fazê-lo parar de bater na mãe.

Na cabeça daquele menino a sua vida inteira fora a ouvi-los discutir. Nesse instante a mãe gritou de aflição.

Senti uma força maior dentro de mim para acabar com aquilo. Era capaz de matar o pai. Estava farto, pela mãe e por si. Tinha de fazer qualquer coisa…

A mãe percebeu instintivamente que ele seria capaz de matar o pai.

Foi nesse dia que a mulher que recebera um nome de anjo viu passar diante de si o horror que era a sua própria vida e o decidiu terminar.

Em segundos  Angela lembrava-se do seu homem de olhos castanho claro inocente,  dengosos, como cão abandonado pedindo para ficar, ficando castanho vidrado,metálico, gélidos, maus,secos. O tom de voz veludo macio rapidamente ficava rouco áspero. O coração batia descompassado como quando corria depressa demais para não perder o autocarro que a levava à sua prisão, o medo subia à garganta e apertava sufocando-a, as lágrimas prendiam-se no peito fazendo alargar as veias que pressionadas por tanta água salgada quase rebentavam. Com a mão cheirando a vinho barato e tabaco tapava-lhe a boca «se gritas levas, se os acordas levas mais e eles também levam e a culpa é tua, ver-te espernear e dar-me socos dá-me prazer, és a minha mulher e eu quero ver-te assim sua puta, tu gostas disto tu queres isto». Forçava-se dentro dela de qualquer maneira por onde encontrasse um lugar para entrar enquanto dizia tudo e Angela se debatia. Não largava o cinto, sabia que se o largasse ela não deixaria de o socar.

«Minha puta tu gostas disto, se te bato ainda mais te mexes cabra». Por segurança tinha deixado de se debater. Sobretudo quando ele aumentou a dose de violência para a ter. Primeiro batia-lhe,depois penetrava-a de qualquer maneira com ela estendida sem forças. Sempre que abria os olhos até quando ia no autocarro, apenas se via a si própria estendida, chorando baixinho, sentindo a dor física deixada pelo cinto, coberta de fluídos vindos das entranhas podres daquele que era seu marido. Uma dor passaria no dia seguinte. A outra era selvagem, indomável e insuportável. Como num filme Angela via as suas lembranças de criança, a sua própria mãe a levar porrada do seu pai. A mãe nem sequer se defendia. “Com as duas mãos tapava o rosto e chorava enquanto os seus sete filhos se agarravam às suas pernas, desesperados, a gritar” contava-lhe a mãe. Via a história dela se repetir.

A mãe de Angela, sua avó, repetia incansavelmente quando o seu violento marido morreu “ Não o esquecerei nunca. Amava-o demais e mesmo sendo um homem doente quero que seja ele a receber-me quando eu própria morrer”.

A vida  de Angela sua mãe, fora dividida entre o amor profundo que a mãe nutria pelos filhos e a violência que esta sofria às mãos do marido.

Nem sequer o amava, mas ele dissera-lhe “vou casar contigo”. Não a largou. Foi intenso e persistente. Acabou por se encantar com o charme e a beleza dele. Namoraram e de mansinho percebeu alguns sinais de um carácter violento. De resto, com ele tudo era bom. Até o sexo. O resto-esse resto que faz tudo o mais perder a importância-sobre a parte cinzenta do seu carácter, a violenta que ela não queria aceitar, perdoava-o.

Haveria de o endireitar com o tempo. Afinal numa relação o tempo de vida que passavam juntos é para ser usado a consertar, a fazer concessões e a aceitar o outro. Talvez mude…pensava Angela.

Angela via a história repetir-se em si própria. Quase a papel químico exceptuando o facto de não ter amado o marido como a mãe tinha amado o pai. Depois vieram os filhos e as agressões continuaram sempre sem descanso « a culpa é tua que me cansas».

O hábito dele beber afinava-se. Proibia os filhos de contar a alguém. Eles agarravam-se um ao outro quando ouviam a voz metálica «para a cama já, tenho que ter uma conversa com a vossa mãe. É sobre vocês, se se atrevem a aparecer apanham todos». Choravam abraçados ele e a sua irmã. Sabiam o que estava para acontecer. Tinham espreitado, era a curiosidade natural quando o ouviam rir. Julgaram que estava tudo bem. Viram a mãe no chão a chorar enquanto ele se ria. A mãe pedia «por favor não». Aquele homem que era o pai de ambos obrigou-a, batendo-lhe.

Toda a gente conhecia a sua mãe e a vergonha que ela sentia sobrepunha-se. Não queria nem pensar que alguém descobrisse. Não podia falar, tinha de esconder dos outros todas aquelas humilhações. A família do meu pai sabia de alguns maus tratos porque ouviram-no gabar-se. Ralhava com ele, mas rapidamente esqueciam e perdoavam «era normal um homem ter às vezes uns desesperos e fazer certas coisas» ouviu as irmãs dele dizerem. Mas eu não esquecia. Doía cada dia mais. Ver a minha mãe humilhar-se assim. Tinha-lhe raiva e tanta pena por ela não se libertar. Mas não o podia mostrar. Se ela sonhasse a raiva, a vergonha alheia que lhe tinha, a minha mãe morreria. Eu via e não podia defendê-la, tirando-a das mãos daquele homem violento sem alma.

Porque razão ela lhe permitia toda aquela loucura? A mãe não tinha culpa. Aquele homem é que batia e bebia e não a respeitava. Ouvia-o dizer com frequência “tu gostas de levar”. Não, não é verdade, para ninguém isso é verdade.

Depois de lhe bater obrigava Ângela a ter sexo. Isso era violação! “Se gritas para alguém te ouvir, levas tu e levam os teus filhos”.

Tão pouco via as lágrimas da sua mãe. Tão pouco a olhava -contou-lhe a mãe muitos anos depois daquele dia.

Não sabia que a mãe, a cada dia que passava não o perdoava, apenas queria esconder envergonhada o que sofria. Vivia escondida numa enorme solidão sem que ninguém a visse.

“Basta”! Nesse dia em que eu quase matei o meu pai, gritou bem no fundo do peito “basta”.

Aos filhos, Angela, amava mais do que a si própria e não ia deixar que eles se envergonhassem mais. Ou que sofressem com aquele cabrão inútil. Onde mais lhe doía era na alma e esta estava a esvair-se lentamente. O vazio ocupava um espaço enorme. Sentia-se perdida mas os filhos eram o mais importante.

Depois desse dia a mãe deixou de guardar rancor ao marido, pai dos seus filhos, meu pai. Mas ele nunca mais lhe iria tocar. Nunca mais a iria atirar ao chão. Nem para sexo, nem para bater. Não voltaria a permitir. Seria a partir desse dia uma mulher orgulhosa. Não mais iria permitir que o seu lado de vítima se sobrepusesse ao seu lado de mulher de coragem.

Se ele precisasse dela ela ajudá-lo-ia. Como o veio a fazer anos mais tarde, quando ele, só, pisado pela vida, abandonado pela família, doente, precisou que ela dele cuidasse.

A mãe fê-lo. Tratou-lhe as feridas, deu-lhe os medicamentos a horas, ajudava-o a comer. Perdoou sem nunca poder esquecer.

Apaixonou-se por outro homem e contou-lhe. Era platónico. Nunca se tocaram nem para sentir o que não sabia nem conseguia sentir há muitos anos: o significado do amor. Um dia soube que a desgraça se abatia de novo sobre a sua vida. O homem por quem estava apaixonada sofria de uma doença incurável que não partilhou com ninguém e foi encontrado morto, sozinho na sua casa. Chorou-o durante anos.

E durante anos, incluindo os que cuidou do seu marido doente que já nenhum mal lhe podia fazer, pensava no seu amor platónico “ é este o homem que quero que me receba quando eu morrer”.

Os anos foram passando e a mãe gostava de como envelhecia. Um pouco forte mas bonita e consciente de que fazia ainda virar cabeças masculinas. Eu repetia-lho vezes sem conta e era verdade.

Finalmente a mãe estava de bem consigo e com Deus. Acreditava que seria capaz de se libertar.

Sabia agora que seria eternamente apaixonada pela vida. Aquela tinha sido a sua missão:cuidar.

Decidiu pelos filhos, no dia em que gritou bem fundo que bastava. No dia em que eu quase o tinha matado.

De tanto que aprendeu sofrendo tornou-se uma mulher de coragem, de sucesso, de orgulho. De sabedoria. Por todos os obstáculos que superou.

A minha mãe foi vítima de violência nas mãos do marido que a prometeu amar, pai dos seus filhos.

“Nós mulheres protegemos os malandros” dizia Angela. Por si própria enfrentando os seus medos, venceu-os, vencendo aquele malandro- na falta  de melhor palavra- meu pai.

Angela conseguiu libertar-se no dia em que decidiu começar de novo. Por si própria, perdoando-o. Por si própria enfrentando os seus medos.

 

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