Saber ler as estrelas

Em outubro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal do Brasil permitiu, numa decisão à justa, de seis votos contra cinco, a detenção de um réu em processo criminal, antes de terem ficado esgotadas todas as possibilidades de recurso.

O STF fundamentou esta sua decisão inédita declarando que uma dupla condenação, em primeira instância e no primeiro tribunal de recurso, não violaria o princípio da presunção de inocência.

Como não foi proferida em Portugal, a posição surpresa do STF logo suscitou reação da Advocacia-Geral da União (AGU), que interpôs uma ação que impõe necessariamente um novo debate sobre o tema.

Soube-se, entretanto, que um dos autores dos seis votos a favor da medida, o magistrado do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, mudou de opinião, pelo que se pode antever como provável a mudança de posição do STF em futuros casos.

E se a decisão do STF passar a ser nesse sentido, determinará provavelmente a volta de Luís Inácio Lula da Silva à cadeira da presidência, porque Lula não será preso antes de ser reeleito Presidente da República, mesmo que a sua condenação de nove anos e meio de prisão ditada em primeira instância, em julho deste ano, pelo Juiz Sérgio Moro, seja confirmada pelo Tribunal Regional Federal, o que provavelmente acontecerá antes das eleições presidenciais que terão lugar no Brasil em 2018. Lula é hoje, de novo, favorito nessas eleições.

Sem medo de o dizer, diz hoje Gilmar Mendes, professor e magistrado do STF desde 2002, que, a partir daquela decisão do STF e de alguns factos processuais da onda anticorrupção, “(…) passou a ocorrer a prisão provisória de forma eterna, talvez até com o objetivo de obter a delação” e disse ainda que “É preciso saber ler as estrelas. Ou se muda isto ou se empodera em demasia a Justiça de primeiro grau e o Ministério Público, em detrimento das instâncias superiores.”

Ora, no início deste mês de dezembro, o juiz Sérgio Moro foi eleito o “Brasileiro do Ano” pela revista “IstoÉ”, prémio que aceitou de bom grado, porque no seu discurso de agradecimento, disse estar “(…) honrado por receber o prémio (…), que é reflexo de que a opinião pública apoia o trabalho anticorrupção e (…) mostra que a (…) luta pela justiça precisa de convencer a sociedade da importância desse trabalho”.

Ao mesmo tempo, estando o ato a ser presidido por Michel Temer, atual presidente do Brasil, acusado pela Procuradoria-Geral da República de, com os ministros Moreira Franco, também no evento, e Eliseu Padilha, serem membros de uma “associação criminosa” que recebeu 587 milhões de Reais em luvas, dirigiu-se Moro ao Presidente e pediu-lhe que utilizasse  o seu “grande poder” para evitar que Supremo Tribunal Federal revisse a sua posição quanto à prisão imediata  após confirmação de condenação em segunda instância. Ao mesmo tempo, não se fez rogado e aproveitou o magnífico púlpito para recomendar muito cuidado no voto nas próximas eleições.

A estupefação não foi geral. Recebeu Sérgio Moro uma salva de palmas dos demais presentes agraciados, amigos e família, com exceção da pessoa do Presidente Temer e dos seus ministros das Finanças e da Secretaria Geral da Presidência, bem como o Presidente do Senado, que ficaram sentados e quietos nas suas cadeiras, enquanto os demais aplaudiam a “ousadia”. Um dia saber-se-á o sentido para onde se encontravam viradas as cadeiras.

Mais uma vez por não se ter passado, este episódio, em Portugal, fora da sala, importantes advogados constitucionalistas e criminalistas brasileiros apressaram-se a lançar um manifesto onde acusam Sérgio Moro de ignorar o princípio de presunção de inocência, de passagem seletiva de informações a jornalistas, de humilhação pública dos réus e da transformação da “Operação Lava Jato” num verdadeiro tribunal inquisitorial de exceção. Recordaram também que os condenados só devem ser presos depois do chamado trânsito em julgado da sentença condenatória, quando as decisões já não são passíveis recurso e que o poder e os direitos da defesa devem ser iguais àqueles de que dispõe a acusação, sob pena da criação de condições para a institucionalização da República dos Juízes.

A expressão “República de Juízes” aparece, supõe-se, pela primeira vez de forma sustentada no livro de Édouard Lambert “O Governo dos Juízes e a Luta Contra a Legislação Social nos Estados Unidos – A Experiência Americana do Controle Judiciário da Constitucionalidade das Leis”, publicado em 1921, que trabalha sobre conceito semelhante – “Governo pelos Tribunais” – usada por L.B. Boudin já em 1911, querendo significar a circunstância política em que os juízes privilegiam, nas decisões que tomam, a sua interpretação pessoal da lei, em detrimento da letra e do espírito dela, dando lugar a um golpe de estado constitucional que põe em causa os direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos.

Foi este mesmo juíz o único brasileiro constante da lista da Time, como sendo um dos cristãos mais influentes do mundo e é ele a nova estrela da magistratura brasileira, olhado como “herói” pelos integrantes dos protestos que levaram à queda de Dilma Rousseff, é também o ídolo de alguns media, como não poderia deixar de ser, quando, sobre ele, diz a mãe orgulhosa: “ele não dá entrevista para qualquer um, tem amigos na Folha de São Paulo, Estadão, Veja e o Globo para falar quando quiser”.

Sérgio Moro pertence a uma típica família tradicional do interior do Brasil, tendo estudado num colégio de freiras carmelitas, de onde saiu aos 16 anos com convicções religiosas suficientemente radicais para terem que ser omitidas na sua página do Facebook. É homem que, ainda assim, não descura a política, por inspiração do pai, falecido em 2005, respeitado apoiante da ditadura militar e fundador do PSDB de Maringá, formado maioritariamente por quadros saídos da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido político destinado a apoiar o regime militar brasileiro dos anos sessenta. Este herói nacional é, portanto, o típico cidadão acima de qualquer suspeita, sem sombra de pecado, que pede, atipicamente, a um governo de acusados de corrupção que pressione um tribunal sobre um determinado e bem concreto sentido de decisão.

Como um cavaleiro andante que luta contra a invocada cultura da bandalheira das relações entre empresas e governo, enquanto democrata-cristão, é particularmente atento às vozes estranhas à concentração de riqueza nas mãos dos “bons”: “Temos de manter uma infinita esperança quanto à diminuição da corrupção e da relação promíscua entre empresas e governo, (…) porque um ambiente limpo é bom para os negócios e para os lucros (…). Acredito que os ganhos de eficiência e de produtividade para a nossa economia serão muitos (…)”, diz Moro, que, quando veio a Portugal em maio foi aplaudido de pé no Casino Estoril e quando cá voltou agora em dezembro para intervir num colóquio apelidado de “Transparência, Accountability, Compliance, Boa Governança e Princípio Anticorrupção”, foi vaiado na Universidade de Coimbra frequentada por cerca de 2.000 estudantes brasileiros.

Descurando de tão comprido nome, disse, na ocasião, sobre Moro a Associação de Pesquisadores e Estudantes Brasileiros em Coimbra: “Tendo em vista que os métodos de atuação no processo judicial adotados por Sérgio Moro são contestados justamente no Comité de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas , a APEB/Coimbra manifesta a sua perplexidade com a escolha desse personagem para participar em evento que trate de tais temáticas, na qualidade de conferencista”.

Isabel Duarte

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