Será Deus a Lei que prende a bola ao chão?

“Deus não existe e nem criou o universo”, disse, sem contemplações, Stephen Hawking, cientista britânico de 72 anos – que, por padecer de esclerose lateral amiotrófica, alguns consideram um milagre vivo – convidado de honra no Festival Starmus de astrofísica que recentemente teve lugar em Tenerife.

Mas o que ele realmente quis dizer foi que o maravilhoso universo não precisou de um Deus para se começar. Que, sim, se terá começado a si próprio, porque há razões para suspeitar desse impulso matriz, como a mão de uma mãe, ou de alguns pais, a ajudar o seu filho a aprender a andar.

Bastou-nos, para começarmos o caminho e darmos nisto que hoje somos, segundo parece, a força que resulta da lei da gravidade.

Muitos agnósticos já suspeitavam do mesmo ao perguntar-se: “o que andou a fazer Deus antes de se ocupar connosco naqueles sete dias?” ou “onde anda Deus quando aparece uma criança com cancro?” ou “andará distraído, Deus, quanto às crianças abandonadas à sua sorte?”.

É também provável que alguém um dia tenha feito outro tipo de perguntas, bem mais prosaicas, perante o desgaste da fé, em face de uma realidade tão extraordinária na sua criação, quanto catastrófica no seu fim. Por exemplo: “Porque acabou o Estrela da Amadora”? Essa dúvida, que alimentou tantos anos inúmeros corações, nunca saiu do meu, existe, é palpável e faz, como uma pedra, duvidar, os corações tricolores, dos poderes divinos.

É assim mesmo, confesso! Algo certamente ocorrido na minha infância, que não descortino, faz-me – ou fazia-me, digo-o com angústia – “ser” do Estrela da Amadora. Desse tempo me veio a tendência para apoiar perdedores, a atração pelas realidades finitas, a certeza de que o mundo é transitório? Certamente que sim, tudo contribuiu para eu ser do Estrela, menos o futebol, de que apenas mal conheço o Peyroteo e o filho – que andava de carrinha enquanto eu ia a butes para a escola – , os restantes quatro magníficos violinos, os cantos mirabolantes do Eusébio, a mágica beleza de Vítor Baía, o que é um fora de jogo e a angústia dos defesas ao formarem barreira para um pontapé de baliza – creio que é assim que se chama ao chuto quando a bola é agredida num penalty, mas se não for, também não vem daí mal ao mundo. Confesso, em todo o caso, que o conhecimento, mesmo superficial, destas duas últimas realidades do futebol me ajudou bastante ao longo dos já longos 38 anos de profissão.

O Estrela da Amadora Futebol Clube, de geração espontânea determinada seguramente por uns bons penalties de vinho tinto, essenciais para mudar o mundo, e pela lei da gravidade, essencial para que uma bola se mantenha a rolar no chão, e quando cabeceada ou pontapeada a ele volte, foi – digo eu mais uma vez com angústia – um clube de futebol português profissional, fundado numa taberna da Falagueira por sete doentes da bola, em 22 de janeiro de 1932, no mesmo dia em que ocorreu a estreia mundial do filme “Taxi”, com Loretta Young e James Cagney, ambos constituindo, portanto, realidades de êxito mediano, mas protagonizadas por grandes atores.

A primeira futebolada premonitória do meu Estrela, a 25 de abril de 1932, deu-se num campo de aviação pelado, onde ganhou amigavelmente ao Palmense por 2-1, pelo que os sobressaltos de que sempre padeceu se atenuaram logo após a revolução dos cravos, quando José Gomes – um dos sete homens que, pelos vistos, venceram Deus a penalties na Falagueira –  lhe tomou as rédeas, fazendo-o subir à II Divisão. O seu é hoje também o nome do Estádio do velho Estrela, construído na Reboleira. A conquista da Taça de Portugal, no culminar dos seus gloriosos anos 80 e a subida à I Divisão, depois de vencer o campeonato da II Divisão em 93/94, levou os adeptos, comigo incluída – que nunca formalmente o fui do clube –  ao delírio. Mas o melhor era ver sofrer sempre o Porto, na Reboleira, mesmo tendo à frente da baliza o belíssimo Vítor Baía, de olhar penetrante e corpo lançadíssimo. Repito, mesmo assim, cá por mim, Vítor Baía podia ser trucidado pelo Estrela, naquele campo mágico que, segundo se dizia, metia medo aos adversários, como aconteceu no jogo de Janeiro de 2006, em que o Estrela comeu o grande Porto em decúbito ventral por 2-1.

Toda a minha família sempre fora do Sporting, ainda são, mesmo os maridos que me entretive a arranjar, o são ou eram, como que por destino inexorável que me estava traçado. E eu, oficialmente, assumia-me nesse particular como boa neta, boa filha, boa sobrinha e boa esposa, mas cá bem fundo no coração, às escondidas, o 586º melhor clube europeu de futebol do século XX era o meu clube, mesmo sendo um satélite do Benfica.

Vinte anos depois de ganhar a taça, restando-lhe quatro mil sócios, o meu Estrela da Amadora foi declarado insolvente e faleceu. Mas deixou atrás de si nomes como Paulo Bento, Abel Xavier, Calado, José Torres, Joaquim Meirim, José Mourinho, Jesualdo Ferreira, Fernando Santos, e aquele treinador do Sporting que já foi do Benfica em tempos e de que agora não me recordo o nome. Mas, de todos esses nomes, houve um que não recuperei, para meu desespero, e que me roubou o coração para sempre, o daquele guarda-redes tricolor que um dia marcou um golo chutando, da sua própria baliza, para a baliza do adversário, coisa que eu nunca antes vira e que nunca mais voltei a ver, ainda que agora, ao pesquisar o nome desse guarda-redes, sem o ter encontrado, me depare com centenas de feitos idênticos, que me roubam o sonho desse golo, a mágica desse chapéu magnífico, que só um Deus, daqueles que ganha o universo nas horas vagas, a penalties, pode alcançar.

Isabel Duarte

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