O debate parlamentar de 7/1 sobre questões de segurança revelou-se, afinal, e ao contrário do que alguns poderiam supor, muito elucidativo. Desde logo, tornou-se evidente a crescente arrogância dos fascistas, com o Chega à cabeça e André Ventura a insistir nas falsidades habituais – desmentidas em absoluto pelos números oficiais – sobre o alegado aumento da criminalidade violenta e a sua suposta ligação à imigração, usando um tom colérico para defender a inefável operação policial na Rua do Benformoso e justificar a sua repetição, seja naquele ou noutro local: “Encostem-nos à parede uma, e outra vez, e outra, e outra, até que eles percebam!”.
Desde logo, pelos mais que exíguos resultados da dita operação – 2 cidadãos detidos, ambos de nacionalidade portuguesa, e a apreensão de um x-acto e de peças de vestuário de contrafacção – torna-se evidente que esta, levada a cabo por dezenas de polícias fortemente armados (como se antecipassem uma selvagem e desesperada resistência armada) nada teve a ver com qualquer finalidade específica de prevenção criminal ou combate à criminalidade e à insegurança. Pelo contrário, assume um carácter profundamente ideológico. Aliás, a operação revela várias vertentes, que vão desde a lógica do recado intimidatório – ao estilo “chegano” do “ou estás caladinho e quietinho, ou levas no focinho” – até à tentativa de captar o eleitorado mais retrógrado e reacionário do Chega, demonstrando que “nós, Governo, PSD e CDS, também sabemos fazer o que Ventura defende”.
E, como sempre, ficam sem resposta as perguntas mais elementares do ponto de vista democrático: afinal, de que eram suspeitas as dezenas de pessoas forçadas a permanecer, durante mais de uma hora, na posição humilhante de estarem encostadas à parede, de pernas e braços abertos? Que suposta criminalidade se pretendia descobrir e combater em plena manhã numa rua habitada e frequentada, em particular a essa hora, por cidadãos pacíficos e trabalhadores?
Perante a convocação, por diversas organizações, personalidades públicas e cidadãos anónimos, da manifestação cívica contra o racismo e a xenofobia, intitulada “Não nos encostem à parede!”, marcada para o próximo Sábado, 11 de Janeiro, às 15h, com percurso da Alameda ao Martim Moniz, um conjunto de partidos (como o “Chega” e o Ex-PNR “Ergue-te”) e organizações pró-fascistas (como o “Habeas Corpus”, liderado pelo ex-juiz e actual Presidente do “Ergue-te”, Rui Fonseca e Castro), apressou-se a reagir. A esta lista somar-se-ão, quase certamente e como já sucedeu no passado, os pró-nazis do “1143” e da “Reconquista”, mesmo que de forma mais ou menos encoberta.
Estes grupos convocaram – em flagrante violação da lei (pois o art.º 7º e o art.º 3º, n.º 2, do Dec.-lei nº 406/74, de 29/8, claramente proíbem este tipo de perturbações e provocações) e com a inadmissível complacência, pelo menos até ao momento em que escrevo estas linhas, das autoridades camarárias e policiais – contra-manifestações para o mesmo dia, hora e até locais próximos. O Chega, por exemplo, convocou para a Praça da Figueira, mesmo ao lado do Martim Moniz, onde está previsto o término da manifestação “Não nos encostem à parede!”, enquanto os outros grupos apontaram para a Alameda, local de início da mesma, dizendo querer nela participar!
Estas iniciativas, claramente provocatórias, têm o propósito de criar incidentes e, sobretudo, de intimidar as pessoas que apenas querem exercer o seu legítimo, democrático e constitucional direito de marchar pacificamente contra os abusos policiais, bem como contra políticas e práticas racistas e xenófobas.
No mesmo debate parlamentar de 7/1, assistimos também à demonstração do desaparecimento da cena política portuguesa e consequente enterro do chamado “centro-direita democrático e liberal”. O CDS, numa atitude que já não deveria surpreender ninguém, produziu declarações políticas em tudo semelhantes às dos deputados do Chega. Mais relevante ainda foi o PSD, particularmente pela voz do seu líder parlamentar, Hugo Soares, que fez declarações essencialmente idênticas, chegando a afirmar que a operação foi uma “operação normal, que deve haver, que deve acontecer, que deve acontecer mais vezes”.
Tudo isto aconteceu enquanto o Governo começou por revindicar ter sido ele próprio a ordenar à PSP a realização de rusgas como aquela, sob o pretexto de criar uma suposta “percepção de segurança”. Porém, perante as mais que justificadas críticas, o Primeiro-ministro declarou: “Sou muito honesto, não gostei da imagem”, passando então a atribuir a responsabilidade à PSP, invocando a autonomia operacional desta. Como se as forças policiais não fizessem parte da Administração directa do Estado, sob a alçada do Ministério da Administração Interna, e não estivessem sujeitas às instruções hierárquicas do Governo!
Importa sublinhar também, em abono da verdade, que esta forma de actuação policial não é propriamente recente, pois vem sendo praticada há muito tempo nos bairros pobres das periferias das grandes cidades, particularmente na área metropolitana de Lisboa. Estes bairros, estigmatizados sob a designação de “bairros problemáticos” (ou “Zonas Urbanas Sensíveis”, como a própria Lei nº 38/2009, de 20/7, os passou a denominar), são frequentemente alvo de operações nas quais as forças e os serviços de segurança são autorizadas a recorrer a operações e meios especiais, com entradas violentas em casas e estabelecimentos comerciais, com portas a serem rebentadas, por vezes na presença da comunicação social, previamente avisada para filmar em directo, com agentes a baterem primeiro e perguntarem depois, encostando as pessoas às paredes, dando-lhes pontapés nas pernas para força-las a abri-las e acompanham estas acções com gritos e, não raras vezes, com insultos ameaçadores e racistas.
Tudo com o mal disfarçado objectivo de intimidar não apenas aquelas populações, mas também todos nós, instalando o receio de que um dia algo semelhante nos possa acontecer a nós, ou a um dos nossos familiares ou amigos, especialmente se erguermos a voz para protestar contra este tipo de abusos. Aliás, um dos factores que mais tem significativamente contribuído para o conhecimento e denúncia pública destas situações é – como se viu no caso do assassinato de Odair Moniz – a existência de telemóveis que filmam o que acontece, e cujo uso é, por isso mesmo, normalmente logo tentado impedir pela Polícia).
Entretanto, e de forma igualmente significativa, alguns dias antes, toda a direita parlamentar, fazendo a vontade ao Chega, aprovou uma lei que exclui dos cuidados de Saúde do SNS os estrangeiros que não sejam considerados legalmente residentes no nosso país. Estes cidadãos podem, assim, trabalhar nos sectores e actividades onde, devido aos miseráveis salários, à completa instabilidade e à absoluta ausência de condições de segurança e saúde, mais ninguém aceita trabalhar. Podem também contribuir para as receitas do Fisco e da Segurança Social – apenas no ano de 2024, o total das contribuições dos imigrantes ascendeu a 2.09.367.026,81 euros! O que não podem é ser tratados quando estão doentes ou feridos!
Os denominados sociais-democratas e democratas-cristãos, e até alguns sectores do PS (esquecidos do que lhes aconteceu quando, perante a crise que então enfrentavam, decidiram que a solução passava por uma viragem completa à direita, enterrando o Socialismo e seguindo a “terceira via” de Tony Blair e outros) estão assim a cometer o erro histórico de acreditar que a sua sobrevivência política passa por pensarem e agirem como o Chega, ou até de se aliarem, ainda que por enquanto não formalmente, com ele.
É certo que tal posição política permite à classe dominante alcançar um duplo objectivo: numa primeira fase, tornar aceitáveis e democráticas – precisamente por serem apresentadas, elogiadas e adoptadas por figuras ditas moderadas, que não podem ser facilmente associadas à extrema-direita – as medidas mais violentas e desabridas, sejam elas políticas, económicas ou sociais. Numa segunda fase, quando os véus democráticos deixem de ser necessários, estas figuras poderão ser descartadas como trapos inúteis, permitindo que os ditadores deixem cair definitivamente a máscara e revelem a sua verdadeira face.
Mas a História, sobretudo a mais recente, mostra-nos outra realidade: a ascensão e a chegada ao Poder dos neofascistas não resultam apenas da errada e até criminosa cumplicidade com a extrema-direita terrorista e fascista; resulta também de uma mais ou menos engenhosa articulação de estruturas e organizações (como partidos políticos e associações) supostamente legais (que actuam aparentemente dentro das balizas de uma certa normalidade legal e institucional, embora constantemente ferindo-a e ultrapassando-a) com grupos mais ou menos informais, compostos por elementos marginais, muitas vezes armados e até militarizados que actuam completamente à margem da lei, de forma brutal, intimidando, agredindo e até eliminando fisicamente adversários políticos, simples divergentes, ou pessoas de etnia, nacionalidade ou orientação sexual diferente. Criam, assim, um ambiente de terror contra aqueles que qualificam como “os maus” (os diferentes, os que vêm de fora, que supostamente “roubam empregos” ou “vivem de subsídios pagos com os nossos impostos”, como proclama a propaganda racista e xenófoba), abrindo e facilitando o caminho às que intitulam de “forças do Bem e da Ordem”.
Se estivermos atentos, é fácil constatar o que, de forma crescente, tem vindo a acontecer não apenas nas redes sociais – onde o incitamento ao ódio e os ataques mais soezes se tornaram parte do quotidiano – mas também nas ruas, especialmente em determinadas zonas do nosso País (Algarve, Sudoeste Alentejano, Porto e Guimarães, por exemplo), onde se têm registado cobardes e brutais ataques a imigrantes e a militantes antifascistas unicamente pelo que são. Esta negra e sinistra realidade já está entre nós, sem que, todavia, se oiça uma só palavra ou se veja uma única medida séria por parte daqueles que agora tanto se esforçam por defender o tão teatral quanto indefensável raid policial na Rua do Benformoso.
Ora, nem podemos aceitar esta crescente banalização e normalização do mal, nem a multiplicação da violência reacionária, seja ela exercida de forma oficial ou através das milícias neonazis e profissionais do ódio cobarde e xenófobo. Nem podemos admitir que, pela lógica da intimidação, do medo e da coerção, os nossos direitos democráticos e os dos nossos concidadãos sejam coartados e mesmo suprimidos.
Não aceitamos que os/nos encostem à parede!
Não passarão!
António Garcia Pereira
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