A Europa já está a arder?

Mário Jorge Neves (Foto FNAM)

Em 1966, René Clément realizou o filme “ Paris já está a arder?” que abordava o plano de Hitler no Verão de 1944 que, na iminência das tropas nazis serem desalojadas da cidade de Paris pelo avanço  progressivo das tropas aliadas, mandou armadilhar os monumentos mais emblemáticos, incluindo a Catedral de Notre Dame.

Alguns oficiais alemães recusaram-se a cumprir essa ordem e Paris, afinal, não ardeu.

Neste momento, múltiplos setores de opinião questionam-se sobre o futuro do projeto europeu.

Com o avanço muito preocupante da extrema-direita na generalidade dos países membros da União Europeia (UE), bem evidente nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, muitas interrogações sobre o futuro são colocadas por um número crescente de cidadãos europeus.

Nestas eleições, que mais uma vez tiveram uma participação muita baixa de votantes, com 15 dos países a terem uma percentagem inferior a 50%, a extrema-direita ficou com três grupos parlamentares, somando 187 deputados, em vez dos anteriores 118, aos quais se acrescentam mais 11 que não estão inseridos em nenhum dos grupos..

Esta situação política resulta de vários fatores acumulados ao longo das décadas de existência da UE, nomeadamente a liquidação do projeto da Europa Social tão prometido aos europeus logo no seu início.

Desde logo, o continente europeu não tem qualquer homogeneidade cultural, social, política, económica e linguística.

A nível da UE, na sua composição atual, são membros 27 países, com uma população de 450 milhões de habitantes e 24 línguas.

Na formação da então CEE, houve sempre uma posição ambígua, e algumas vezes até hostil, da Grã-Bretanha, temendo que o chamado “Mercado Comum” debilitasse as suas relações comerciais com os países da Commonwealth.

No período inicial, o grande objetivo anunciado pela então CEE era a construção da Europa Social. 

Os partidos socialistas e socialdemocratas da CEE adotaram o seu primeiro programa em Abril de 1973, em Bona, com a designação “ Por uma Europa Social”.

Nesse sentido, a Europa Social foi apresentada por essas forças políticas para regular, planificar e democratizar a economia, harmonizar os sistemas sociais e fiscais, elevar o nível de vida, melhorar as condições de trabalho e reduzir a jornada laboral.

O socialdemocrata holandês Sicco Manshalt, presidente da Comissão Europeia em 1972, afirmou publicamente que era necessário “ um socialismo novo e moderno organizado à escala europeia, que não se limitasse a corrigir os excessos do capitalismo “.

Não nos podemos esquecer que estas posições surgiram em pleno período da chamada guerra fria, onde se verificava uma fortíssima competição política e ideológica com os países do bloco de Leste. 

O SPD alemão opôs-se sempre a uma ampla convergência entre comunistas, socialistas e social-democratas que se esboçava já em diversos países europeus na promoção das política sociais.

E um exemplo degradante desta atitude foi a existência das chamadas “ interdições profissionais” na Alemanha Ocidental para todos aqueles que fossem conotados com o partido comunista alemão, impedindo-os de acederem a qualquer emprego na função pública.

Com a ascensão do neoliberalismo na década de 1980 através de dirigentes políticos como Reagan, M. Thatcher e Helmut Kohl, toda a situação da UE foi clarificada para pior.

Verificaram-se profundas divisões internas no seio dos socialistas e dos socialdemocratas sobre a política europeia e a posição a assumir perante o neoliberalismo.

Com o decurso dos anos, estas forças políticas capitularam política e ideologicamente perante o neoliberalismo e passaram a praticar políticas de submissão aos Estados Unidos e de abandono, no essencial, das políticas sociais.

A generalidade dos partidos comunistas, incapazes de acompanhar a rápida evolução das sociedades e das profundas alterações na sua composição a todos os níveis provocadas por uma ofensiva violenta do neoliberalismo, foram arrastados pela impetuosidade dos acontecimentos e isolaram-se da grande massa dos trabalhadores.

Com essa política neoliberal temos assistido à desindustrialização da UE, à perda de investimentos para os Estados Unidos, à sua crescente militarização, a uma ofensiva de puro terrorismo político contra os sindicatos, ao aumento da polarização social e a um quadro degradante de vassalagem aos Estados Unidos.

Neste contexto de agravamento contínuo das condições de vida de um número crescente de cidadãos europeus, de recessão económica e à incompetência e marcada mediocridade intelectual das lideranças políticas, tem vindo a instalar-se um quadro de descrença, de insegurança e de desespero que conduz a um clima de medo sobre o futuro próximo, conduzindo a que parte deles se refugiem nas propostas das forças de extrema-direita.

Este abandono das políticas sociais e o aprofundamento da pobreza e das desigualdades sociais têm servido de um “caldo de cultura ”propício ao crescimento do fascismo na Europa.

O discurso de ódio tem tomado conta do debate político, sendo certo que a democracia é incompatível este tipo de intervenção porque conduz à liquidação de todas as formas de tolerância e de respeito pelo livre pensamento.

Nos grandes grupos económicos que detêm grande parte dos órgãos de comunicação social, o jornalismo que muitos de nós conhecemos como força indispensável de informar com isenção e de promover posições de consciencialização em prol da democracia e da liberdade desapareceu e a ética jornalística tem sido sistematicamente violada.

A propaganda pontifica e assistimos à contínua manipulação das emoções, instaurando uma situação de insegurança social.

A UE tem de proceder com toda a urgência a uma mudança profunda das suas políticas para que elas se dirijam para a resolução das necessidades fundamentais dos cidadãos e para que possam inverter a decomposição da consciência civilizacional europeia.

Só com políticas sociais e com uma crescente democratização das instituições europeias é possível inverter o crescimento do fascismo no espaço europeu.

As instâncias europeias estão prisioneiras de uma ampla burocracia parasitária, sem valores humanistas e sem qualquer preocupação social e cuja qualidade política é em muitos casos deplorável que merecem mais a designação de “burrocratas” do que de burocratas.

Nesta luta cidadã para que a democracia e a liberdade não sejam espezinhadas no espaço europeu, é indispensável que o jornalismo profissional cumpra o seu papel histórico, informando, formando consciências democráticas e promovendo os valores civilizacionais europeus.

Sem este contributo, a luta por uma Europa Social estará muito mais dificultada, para mal de todos nós.

É urgente que aquilo que se pode chamar “ democracia dos espectadores” seja urgentemente substituída por cidadão ativos, esclarecidos e mobilizados para a construção de políticas que superem os problemas que estão na origem de condições de vida degradantes para muitos cidadãos europeus.

Não podemos permitir que os burocratas ponham a Europa a arder!

Mário Jorge Neves, médico

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