A audição parlamentar da Procuradora-Geral da República – uma lástima!

Se alguém pudesse ainda ter dúvidas sobre a completa inadequação e inidoneidade da Dra. Lucília Gago para o desempenho do cargo de Procuradora-Geral da República, decerto que as perdeu definitivamente com a verdadeira e absoluta lástima que foi a sua audição na Comissão de Assuntos Constitucionais e de Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República.

Do ponto de vista da postura, nada de novo: a atitude sobranceira e arrogante de quem não tem que responder nem prestar contas a ninguém e que só responde ao que quer e não ao que lhe perguntam.

Quanto à posição de partida relativamente ao conteúdo, houve uma intervenção inicial, com 15 a 20 minutos, de meras “burocratices” e auto-justificações: que esta até foi a quarta vez que foi ao Parlamento, que esteve sempre disponível para lá ir, que o quadro de inspectores duplicou, que cerca de 30% das classificações atribuídas em 2023 foram abaixo da de mérito, que os relatórios anuais da actividade do MP sempre existiram, ainda que sempre atrasados, que a greve dos funcionários Judiciais trouxe graves consequências, etc. Nem uma só abordagem das matérias de fundo que decerto iriam ser colocadas – como foram, pelo menos em parte – pelos deputados. 

Seguiram-se as questões colocadas pelos diversos grupos parlamentares, os quais – com a única excepção do Chega, que tratou de desempenhar o papel de defensor oficioso da Sra. PGR… – colocaram diversas questões, bastante delas até, e muito significativamente, em comum. Desde logo, e quanto às matérias insolitamente não abordadas no relatório de actividade do MP, foram suscitadas as seguintes:

– Violações sistemáticas do segredo de Justiça, com diligências “em directo” nas televisões e nas rádios, e com publicações, não autorizadas nem consentidas, de escutas, com a consequente inversão prática do ónus da prova e a eventual necessidade de alteração da lei para evitar e sancionar tais condutas. 

– Número de processos instaurados pelo Ministério Público (MP) por violação do segredo de Justiça e qual o número final de condenações.

– Abuso e banalização quer do recurso às escutas telefónicas como técnica de investigação, quer da sua duração (algumas durante anos).

– Averiguações Preventivas (as famigeradas AP’s) que não resultaram depois em nenhuma indiciação ou acusação.

– Razões da aplicação da sanção de suspensão a 7 magistrados.

– Duração máxima e duração média dos inquéritos-crime instaurados.

– Explicação para as reduzidíssimas percentagens de acusações deduzidas em 2023, quer em geral (cerca de 23.000), relativamente ao número global de inquéritos findos (aproximadamente 428.000), quer no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP).

– Prazos excessivos de detenção para primeiro interrogatório Judicial, desrespeitando o limite constitucional das 48h, e postura do MP face a tal abuso.

Na sua intervenção final (supostamente de outros 15 minutos, mas em que se alongou mais tempo e onde começou por dizer que “nem 15 horas dariam para responder às questões colocadas”), as respostas dadas por Sua Excelência podem sintetizar-se desta forma:

– Escutas telefónicas: até diminuíram desde 2015, embora tenham aumentado em 2023 (para 10.553), carecem sempre de autorização do Juiz (como se não fossem requeridas pelo MP…), situações de escutas que duraram um tempo alargado “foram excepcionais”, “a lei está bem como está” e “qualquer abuso dos meios de investigação pode ser suscitado no próprio processo”. Pontos a reconhecer que estão errados na prática actual e juízo autocrítico sobre os mesmos, zero!

– Violações sistemáticas do segredo de Justiça, com julgamentos na praça pública e violação da presunção constitucional de inocência: tem havido é uma “presunção de culpa do MP”, que esquece o interesse da investigação e desconhece o universo das pessoas que têm acesso ao processo (logo, a culpa é dos outros…), é fantasioso atribuir a responsabilidade de tais violações ao MP, sendo esta uma tese que interessa sobretudo aos arguidos e às suas defesas para se vitimizarem e desviarem o foco das investigações de que são alvo, e, enfim, pasme-se, se se pretende perseguir os responsáveis pelas violações do segredo de Justiça, então têm de se alargar as escutas telefónicas para além dos seus actuais limites e que a eventual revisão do actual regime das escutas pode fazer cair investigações. Ou seja, se processos muito mediatizados, com elementos (filmagens de diligências, documentos, transcrições de escutas, etc.) favoráveis às teses da acusação são amplamente divulgados, formando assim uma prévia, pública e inexorável imagem condenatória dos arguidos, que balanço é feito e que responsabilidades são atribuídas aos investigadores titulares de tais processos quando estes são afinal arquivados ou terminam com uma decisão Judicial de absolvição? Nenhuma! Zero!

– Diz Lucília Gago que os recursos humanos do MP não têm vindo a aumentar (embora os 1722 magistrados existentes em Dezembro de 2023 sejam mais 69 do que no ano anterior e não se refiram os muitos que se encontram em comissões de serviço, fora das respectivas funções), tanto mais que o peso do sexo feminino nas fileiras do MP é de 2/3 e as magistradas têm muitas ausências com a gravidez, licença de maternidade, aleitação e amamentação. Esta brilhante asserção está ao nível das mais primárias e reacionárias entidades empregadoras (se não se produz o suficiente é por causa das mulheres e da sua “mania” da maternidade…) e nem merece comentários!

– O aparentemente baixo número de processos concluídos com acusação no “corpo de elite” do MP, o DCIAP, deve-se, por um lado, à remessa de 98 processos “findos por outros motivos” para outras comarcas e, por outro lado, à atribuição ao DCIAP, por despacho da PGR, dos processos de maus tratos contra idosos. Também aqui, pontos negativos a reconhecer e corrigir, designadamente em termos do elevadíssimo número de inquéritos-crime que em nada resultaram (isto é, que terminaram em arquivamento, em despronúncia ou em absolvição judicial), zero!

– A detenção por 22 dias (processo da Madeira) à espera de uma decisão relativamente às medidas de coacção – que, nos termos da Constituição, deve ser tomada em 48h – é uma situação excepcional e da responsabilidade do Juiz de instrução. Como se não houvesse diversas (demasiadas) situações de detenções por 3, 5, 7 e mais dias e o MP nada tivesse a requerer ou a promover nesse campo! Mas também sobre isto, zero!

– Hierarquia e o seu mau funcionamento – com a directiva elaborada pela própria PGR (e ainda que impugnada, sem efeito suspensivo, pelo Sindicato do MP) declarou “penso que está tudo a correr normalmente”, pelo que igualmente neste campo – dos mais críticos relativamente à actuação do MP, em especial sob a direcção de Lucília Gago – nada há a apontar nem a corrigir, zero!

Como se tudo isto já não fosse bastante, Lucília Gago foi, e por diversas vezes e por vários deputados, instada a esclarecer em que consistia afinal e quais os autores da “campanha orquestrada contra o MP” a que, numa tão insidiosa quanto claríssima alusão ao chamado “Manifesto dos 50”, que tenho a honra de integrar, tem feito várias referências, desde logo na entrevista à RTP de 6 de Julho, e quem anda afinal “a reboque do ribombar dos tambores da ignorância e da superficialidade ou de uma contagiante e incauta maledicência, enraizada em pérfidos desígnios”, como se arrogou afirmar, em 4 de Setembro, no discurso da tomada de posse de 70 novos Procuradores Gerais Adjuntos.

Ora, Lucília Gago, numa atitude bem demonstrativa da completa falta de ética e de coragem para assumir responsabilidades, esquivou-se a tais perguntas muito directas e claras, e “corajosamente” e não respondeu! Para quem não está, nem quer estar, habituado ao contraditório e não tem frontalidade cívica, é de facto mais fácil atacar indirectamente e difamar pelas costas do que falar e criticar directa e claramente!…

Aliás, Sua Excelência também não esclareceu por que razão proibiu, em Fevereiro de 2024, os agentes do MP de participarem na Conferência “Mega-Processos – Quando a Justiça Criminal é especialmente complexa”, realizada em 8 e 9 de Fevereiro com o apoio do Conselho Superior da Magistratura, na qual foi apresentado um estudo elaborado pelo Gabinete de Apoio aos Magistrados Judiciais do qual resultava que 49% dos inquéritos-crime a cargo do MP demoraram mais de 3 anos a serem concluídos e 6% mais de 7 anos! E, claro, também nada esclareceu quanto ao inefável processo disciplinar (inquérito entretanto arquivado) instaurado contra a Procuradora Maria José Fernandes pelo grave e intolerável “delito” de ter ousado expressar a sua opinião sobre uma série de aspectos da actuação do MP, muitos deles directamente relacionados com as questões suscitadas pelo “Manifesto dos 50” e com as que foram agora colocadas pelos deputados.

Não podendo, de igual modo, deixar de se estranhar e criticar o formato desta audição, demasiado curta, com uma única ronda de perguntas dos deputados e com 2 períodos de cerca de 20 minutos para Lucília Gago (o que lhe permitiu eximir-se a ser confrontada numa eventual segunda volta com a sua arrogante ausência de resposta às questões mais relevantes directamente colocadas na primeira ronda), o certo é que a mesma audição serviu, porém, para retirar e confirmar três conclusões essenciais:

1.ª Para a actual Procuradora-Geral, em matéria do MP que ela dirige, “tudo tem corrido normalmente”, não há situações anómalas a reparar nem quaisquer erros, mais graves ou menos graves, a corrigir e, sobretudo, não há quaisquer responsabilidades a assumir pela própria. 

2.ª Face à situação existente, em particular na Justiça Criminal, e a esta postura, manifesto se torna que a Dra. Lucília Gago não tem nem dimensão ética nem estatura cívica para desempenhar o cargo em que se encontra. Fez muito mal à Justiça e ao próprio MP e deixa uma herança muito pesada, não apenas de erros e vícios acumulados como também da pior cegueira de que se pode padecer, que é a daqueles que veem, mas não querem ver.

3.ª Fica assim a claro que, quer os critérios de escolha e a missão atribuída ao novo Procurador-Geral da República, quer as medidas políticas, legislativas e organizativas que devem ser adoptadas para evitar a repetição dos desmandos conhecidos (violações do segredo de Justiça, condenações antecipadas e na praça pública, abuso da utilização e da duração das escutas telefónicas, detenções e “Averiguações Preventivas” injustificadas, ostensivo incumprimento dos prazos, ausência de efectivo controlo hierárquico sobre o que cada Procurador faz, etc.), porque dizem respeito não a uma qualquer elite mas à generalidade dos cidadãos, devem poder ser ampla, franca e responsavelmente debatidos.

António Garcia Pereira

Um comentário a “A audição parlamentar da Procuradora-Geral da República – uma lástima!”

  1. José diz:

    Sem palavras! Ou apenas umas poucas: Brilhante, como é habitual!

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