A religião Woke: o absurdo dos tempos que correm!

Mário Jorge Neves (Foto FNAM)

O primeiro uso registado da frase “stay woke”, mantem-te desperto, foi na canção do grande cantor de blues, em 1938, Lead Belly, com o título “scottsboro boys”. Esta noção do despertar leva-nos à história religiosa dos Estados Unidos tão marcada por um largo conjunto de “despertares religiosos “ protestantes.

O termo Woke foi disseminado, a partir de 2010, na cultura das entidades universitárias desse país através de setores de professores universitários. Alguns autores consideram que a origem desta ideologia ou quase religião teve origem em França, a partir da chamada “French Teory”, tendo depois amadurecido nas universidades americanas. Lacan e Foucault são considerados por esses autores como os pensadores franceses que inspiraram o movimento woke.

Em várias universidades diversas obras foram retiradas dos conteúdos curriculares pelo facto de serem consideradas racistas, de índole colonialista e sexista. O mesmo se passou com múltiplas obras literárias de referência universal em que estes militantes woke vieram exigir que fossem reescritas para serem retiradas expressões que pudessem ser consideradas ofensivas para algumas minorias. Os militantes woke são na maioria brancos e de classes mais privilegiadas. 

Em múltiplas reuniões públicas os militantes deste movimento afirmam estar arrependidos do seu racismo e pedem perdão pelos seus pecados. Na sua versão atual, o woke exige que as nações e os povos assumam os seus passados criminosos.

Com o movimento “ Black Lives Matter”, constituído na sequência do assassinado do cidadão negro americano George Floyd, essa ideologia sofreu um enorme impulso. Logo a seguir, assistimos à exigência de ser aplicada uma diminuição do financiamento da polícia.

Ora, em diversas cidades americanas, só quem não vive em bairros perigosos e pode dispor de segurança privada é que pode exigir tal medida de ânimo leve. Por outro lado, diversos membros da Câmara dos Representantes promoveram iniciativas públicas em que se ajoelharam como prova de solidariedade com as vitimas da polícia. Esta ofensiva woke alargou a sua ação ao derrube de estátuas em várias cidades americanas sob o pretexto de serem figuras históricas racistas e colonialistas.

Segundo o movimento woke, os brancos seriam por definição racistas e colonialistas. Este movimento tem na teoria do género o núcleo do seu pensamento político. São ultraidentitários e declaram-se disponíveis para defenderem qualquer comunidade que considerem oprimida. Querem formatar as crianças nas escolas difundindo que o género se pode escolher e não tem nada a ver com o corpo e as suas características sexuais. Por isso, defendem a adoção de nomes neutros, sem identificação masculina ou feminina. Algo que até há pouco tempo classificavamos de delírio ou transtorno da personalidade, passou a ser designada “ identidade fluida”.

É para mim escandaloso que, em 2016, a Associação Médica Britânica tenha publicado um “guia para a comunicação inclusiva no posto de trabalho” em que recomenda aos médicos que utilizem a expressão de “pessoas grávidas” em lugar de mulheres grávidas para não ofender as pessoas transexuais.

Alguém conhece alguma outra pessoa, sem serem as mulheres, que possa ficar grávida? Estes militantes têm defendido que se uma pessoa se declara transexual pode frequentar os sanitários do sexo oposto sem restrições. Este movimento pretende apagar a memória histórica da civilização e formar uma nova humanidade. Estes militantes vivem num mundo de abstração e de imagens.  Consideram ainda que nas discussões não podem ser utilizadas palavras muito diretas e objetivas porque podem ser entendidas como agressões e as pessoas sentirem-se ofendidas.

Ora, este posicionamento representa, na prática, a proibição de qualquer discussão argumentada, dado que basta alguém sentir-se ofendido para que o discurso livre seja liquidado. Entre isto e o pensamento único neoliberal não há nenhuma diferença. Todos aqueles que discordam deste tipo de mentalidade têm sido objeto de amplas campanhas difamatórias nas redes sociais.

Os militantes woke são inimigos encarniçados das ideias iluministas, negando compreender que este movimento surgiu num período histórico onde a Europa vivia alagada em sangue por contínuas guerras religiosas com muitos milhares de mortos e por diversas epidemias de doenças sem cura, bem como um clima político de terror, onde muitas mulheres foram mortas nas fogueiras sob a acusação de bruxaria e os homens suspeitos de atentarem contra o poder monárquico eram mortos e alvo de prisões de longa duração.

O iluminismo representou um salto civilizacional de enorme alcance para os povos, sendo claro que a ampla divulgação do conhecimento que eles defenderam e empreenderam teve por finalidade libertar as pessoas das superstições, dos preconceitos e do medo. O iluminismo sempre defendeu a razão, sendo certo que a função mais importante da razão é manter a força dos ideais.

No nosso país, esta religião começou por ser dinamizada por setores políticos que se intitulam de esquerda. Desencadearam ações de contestação de cunho identitário a nível de alguns setores sociais específicos, focalizando aí a quase plenitude da sua intervenção político-partidária. Só que este tipo de abordagem de problemas reais tem constituído uma atomização dos processos reivindicativos, desligando-os de uma visão universalista de evolução e de humanização das sociedades.

Uma visão progressista significa um claro compromisso com as abordagens universalistas, em detrimento de concepções tribalistas, adotando uma crença firme na possibilidade do progresso. Se renunciamos à perspetiva de progresso, a política fica restrita à mera luta pelo poder.

Entretanto, foi surpreendente assistirmos à adesão do nosso Presidente da República à religião woke quando num passado recente veio defender, no exercício dessas suas funções, o pagamento de reparações às ex-colónias por crimes praticado no passado colonial. Em termos de coerência política devia exigir a Itália o pagamento de reparações idênticas pelos séculos de ocupação do nosso país pelo Império Romano, o mesmo aos países árabes e até a Espanha pelos 60 anos de ocupação.

Os problemas de qualquer minoria, ou de qualquer setor social discriminado, têm de estar inseridos no conjunto mais geral da transformação da sociedade e na exigência da sua evolução humanista, onde tais situações sejam erradicadas. Atomizar os problemas reais só pode conduzir à sua perpetuação e à instrumentalização circunstancial desses setores sociais.

A focalização da ação política em aspetos identitários acaba por se tornar reveladora de uma gritante incapacidade em elaborar um programa global de transformação da sociedade e em definir a resolução desses problemas em articulação com medidas mais gerais nos planos sociais, económicos e da cidadania esclarecida e solidária.

Temos de dinamizar o livre debate de ideias e da procura de soluções que mobilizem as consciências cidadãs de que o progresso é possível e que é condição insubstituível para o avanço e aperfeiçoamento civilizacional. Chantal Mouffe dizia que grande parte do que é apresentado como consenso democrático mascara na realidade a apatia e que uma sociedade para funcionar bem, necessita do confronto e do debate.

A esperança de que um mundo melhor é possível, permite-nos fazer uma intervenção com convicção e energia.

Mário Jorge Neves, médico

Um comentário a “A religião Woke: o absurdo dos tempos que correm!”

  1. Miguel Martins diz:

    Mto bom este artigo.

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