As PPP na Saúde (2ª parte)

Mário Jorge Neves (Foto FNAM)

A ofensiva contra o NHS britânico, visando torná-lo um filão muito rentável para vultuosos negócios de companhias privadas multinacionais, bem como a transformação da saúde numa qualquer mercadoria sujeita às leis da oferta e da procura, teve os teve o seu início em 1989 quando o governo de M.Thatcher apresentou um documento orientador da reforma do sistema de saúde com o título “Trabalhando para os doentes”. Este documento tornou-se mais conhecido pela designação de “White Paper” e estabeleceu as bases ideológicas do neoliberalismo selvagem nas políticas de saúde.

Nas suas considerações gerais, era afirmado que ele visava o “fortalecimento do NHS”, “colocar o doente acima de qualquer interesse”, que “o governo mantém e não mudará os princípios sobre os quais o NHS foi erigido”, o “NHS continuará aberto a todos e financiado pelas contribuições fiscais” e que “cada vez mais gente se dá conta de que nova injeção de mais dinheiro não é, por si só, uma resposta”.

Como objetivos gerais foram colocados os seguintes: “oferecer aos doentes, independentemente do seu lugar de residência, melhores cuidados de saúde e maior possibilidade de escolha dos serviços disponíveis”; “gerar maior satisfação e incentivos para os profissionais do NHS que demonstrem responder satisfatoriamente às necessidades e preferências dos doentes a seu cargo”.

No desenvolvimento dos conceitos e das propostas apresentadas, encontramos no documento algumas afirmações que merecem uma referência particular:

  • A afirmação altissonante de “o utente em primeiro lugar”.
  • “Pressionar a diminuição das despesas farmacêuticas através de um novo desenho orçamental, no qual as Autoridades Regionais de Saúde fixarão os orçamentos farmacêuticos para os grupos de clínicos gerais e as listas destes médicos receberão orçamentos indicativos de forma a guiar o custo das suas prescrições” (são os chamados orçamentos clínicos).
  • “Extensão progressiva de uma maior flexibilidade nas remunerações em todo o NHS, de forma que os gestores possam premiar o desempenho individual eficiente”.
  • “As regiões e os distritos serão financiados pelas estatísticas da população ponderada por idade e nível de saúde.”
  • “O NHS e o sector privado passarão a apoiar-se mutuamente e a oferecerem serviços reciprocamente, em benefício dos utentes.”
  • “A recompensa dos clínicos cujos serviços atraiam maior número de utentes, de forma a aumentar a proporção da sua remuneração, será calculada de acordo com a extensão das suas listas e passará de 46% a 60%, o mais rapidamente possível”.
  • “O resultado será um melhor tratamento para o público, tanto como utentes como contribuintes. O governo, deste modo, reforçará os aspetos positivos do NHS e poderá compensar as suas falhas, assegurando que ele se fortaleça, se modernize e se comprometa, mais que nunca, em trabalhar para os utentes”.

O conceito nuclear deste “White Paper” foi a separação das funções de prestador e financiador, nomeadamente através da separação dos hospitais que prestam os serviços e das autoridades de saúde e os clínicos gerais que lhes compram esses serviços.

Em torno desta medida, foi também argumentado que se os papéis estivessem separados as agências financiadoras teriam a possibilidade de efetuar um exame mais cuidadoso das prioridades e necessidades dos doentes e das populações, e uma avaliação mais cuidadosa e independente. No essencial, a separação entre compra e prestação era parte do modelo de reforma assente no “mercado interno” necessário para introduzir a atribuição de recursos baseada na competição entre prestadores e formalizado através de contratos, em que essa atribuição estaria ligada, cada vez mais, ao volume de atividade e aos custos e menos aos gastos históricos. 

Outra das componentes centrais desta reforma foi o estabelecimento do modelo designado como “General Practitioners Fund Holdings Schemes” (GPFHS), no qual grupos de médicos generalistas, constituídos por 6 ou 7 elementos e com listas de, pelo menos, 11.000 pessoas, tinham a responsabilidade de gerir um orçamento atribuído pelo NHS e destinado a um vasto conjunto de serviços que incluíam as consultas de clínica geral, as consultas hospitalares, os internamentos, intervenções cirúrgicas, exames complementares de diagnóstico, todos os medicamentos receitados, as despesas administrativas decorrentes da gestão do próprio grupo de GPFHS, como contratação de pessoal e aluguer ou aquisição das instalações utilizadas para a respetiva atividade, e ainda as suas próprias remunerações como médicos.

Estes grupos de médicos eram, nas suas características de enquadramento legal e de funcionamento, cooperativas cuja fonte de inspiração foi, nos aspetos essenciais, os “PPGP” americanos (Pré-Paid Group Practise).

Estas estruturas consistiam em grupos de profissionais que desenvolviam a sua atividade mediante um pré-pagamento através de quotas capitativas. Eram privadas, sem fins lucrativos, e surgiram no início do século XX quando os operários de origem europeia e as organizações locais dos sindicatos trataram de proceder à transposição do modelo de fundos de doença das caixas de segurança social dos seus países de origem, de modo a garantir assistência médica a preços razoáveis. Esta forma de prestação de cuidados tinha sido alvo de uma ampla contestação da influente Associação Médica Americana que a considerou como medicina socializada, chegando a expulsar médicos que trabalhavam nos PPGP.

O White Paper integrou todas as conceções políticas e ideológicas da competição gerida, num processo de importação do modelo dos EUA. Aliás, é por demais elucidativo que o ideólogo da competição gerida, o americano Alain Enthoven, intimamente ligado aos interesses das HMO´s, tenha sido o responsável direto pela elaboração e implementação do White Paper, acompanhado por uma numerosa equipa de colaboradores do seu país.

Assim, na Grã-Bretanha, os elementos dos grupos de médicos generalistas (GPFHS) passaram a um estatuto de trabalhadores por conta própria, desinseridos de qualquer estrutura de carreira médica e da consequente progressão técnica, e sem disporem de horários de trabalho ou períodos de férias definidos. Foram transformados numa caricatura de empresários.

Estes grupos foram também designados como “cooperativas médicas”.

Se inicialmente o governo conservador insuflou consideráveis somas de recursos financeiros neste modelo com o objetivo de atrair os médicos e de o tornar viável, alguns anos depois começaram a verificar-se substanciais diminuições das verbas. Quando surgiram os protestos contra esta situação, o governo conservador considerou que as disposições e regras do mercado implicavam uma gestão hábil do “aumento”, mas também da “diminuição”.

Os médicos generalistas, que tinham desempenhado um papel essencial no desenvolvimento do sistema de saúde britânico e na obtenção de notórias melhorias dos indicadores de saúde, ficaram confrontados com uma difícil situação de exercício profissional, tendo em conta que os contratos tinham sido concebidos como um instrumento para os condicionar na sua atividade profissional

A necessidade de centralizar as instalações para proporcionar economias de escala requeridas pelo mercado, passou a constituir o padrão da prestação dos cuidados, em vez das necessidades de acesso.

Os médicos generalistas, confrontados com elevados custos de capital e com défices financeiros nos seus orçamentos operacionais, tornaram-se incapazes de contratar os serviços do NHS nos níveis anteriores de prestação. Deste modo, começaram a procurar novas fontes de receita através da venda de seguros ou da prestação de cuidados privados.

A incapacidade em conseguirem gerir as despesas e o consequente endividamento crescente, determinaram que esses grupos de médicos tenham sido impelidos a vender as suas instalações às empresas de leasing.

Passados poucos anos, esses grupos de médicos passaram a ser assalariados dessas empresas e de outros grupos económicos privados que, entretanto, por via das PPP hospitalares, se encontravam a gerir essas unidades.

O objetivo empresarial das PPP foi “anexar” os médicos generalistas nas áreas geográficas envolventes para procederem ao encaminhamento dos seus doentes para essas unidades hospitalares.

A evolução do sistema de saúde da Grã-Bretanha mostrou, de forma objetiva, que nenhum dos problemas anteriores foi resolvido e que a reforma conduziu à degradação generalizada do sector, utilizando campanha massivas de propaganda para ludibriar os cidadãos e, com isso, diminuir a resistência e a contestação a uma política concertada na continuidade entre o Partido Conservador e o Partido Trabalhista, cujo objetivo comum foi debilitar o NHS e promover vultuosos negócios privados à custa dos dinheiros públicos. 

Ao longo dos últimos 30 anos, anos, as empresas multinacionais e os investidores privados foram tendo acesso a crescentes segmentos do NHS, com a simultânea diminuição da capacidade de resposta dos seus serviços.

O número de camas do NHS diminuiu para mais de metade de 299.000 em 1987/1988 para 141.000 em 2019/2020.

Os hospitais do NHS, em particular os hospitais universitários, transferiram uma percentagem importante das suas camas para empresas privadas através de joint ventures com a HCA (Hospital Corporation of America) que se descreve a si própria como a maior prestadora de serviços de saúde privada no mundo e a maior prestadora de serviços de saúde financiados a título privado na Grã-Bretanha.

A nível dos hospitais universitários que têm este tipo de negócios com a multinacional americana HCA está o University College London Hospitals.

Durante todo este tempo, tem-se assistido a sucessivos escândalos do financiamento privado, com múltiplas falências das empresas envolvidas nos consórcios das PPP.

Um dos últimos e emblemáticos casos foi a falência da Carillion plc. que era uma empresa multinacional britânica de serviços de construção e gestão de instalações e que em 2016 tinha 43.000 funcionários, 18.257 deles na Grã-Bretanha.

Depois de várias dificuldades financeiras acabou por entrar em falência em Janeiro de 2018, deixando um passivo de 7 biliões libras.

O colapso deste multinacional custou aos dinheiros públicos muitos milhões de libras e conduziu a um adiamento muito significativo da concretização de serviços e projetos públicos vitais.

A Carillion tinha um conjunto de contratos Private Finance Initiative (PFI) e do Local Improvement Finance Trust (LIFT) no NHS, incluindo a propriedade e operação de 11.000 camas hospitalares em uma dúzia de hospitais do NHS na Inglaterra e na Escócia, bem como vários consultórios de médicos generalistas e de serviços sociais comunitários.

Por outro lado, têm sido desenvolvidas ao longo dos anos diversas vagas de fusões de unidades hospitalares que têm determinado o elevado encerramento de serviços e eliminação de camas, bem como um decréscimo simultâneo do número de profissionais de saúde a nível dos serviços do NHS. 

Estas fusões foram propagandisticamente apresentadas à opinião pública como reestruturações para melhorar a capacidade de resposta desses hospitais. 

A nível da diminuição dos profissionais de saúde no NHS, podemos referir, a título de exemplo, que nos últimos 10 anos o número de enfermeiros se reduziu em 40%.

Outra aspeto que merece particular atenção é o chamado programa dos centros de tratamento do setor independente ( ISTC) que desde 2003 têm recebido cerca de 5 biliões de libras com o objetivo formal destas estruturas participarem na recuperação das volumosas listas de espera cirúrgicas.

Em julho de 2023 a lista de espera para tratamento hospitalar de rotina atingiu cerca de 7,7 milhões de pessoas, com quase 390.000 esperando mais de um ano.

As listas de espera eram de 2,32 milhões de pessoas em 2010 e passaram para 4,57 milhões em 2020, ou seja um número em constante crescimento.

No entanto, sempre que surgem complicações é o NHS que assume os riscos porque, de uma maneira geral, o setor privado não dispõe de cuidados intensivos.

No conjunto dos países da OCDE, quanto às camas para casos agudos, a Inglaterra tem 2 camas por mil habitantes e a Colômbia que é o país com menos tem 1,6 por mil.

 O japão é o país com maior número, 7,8 camas por mil, enquanto Portugal dispõe de 3,3 por mil.

A seleção adversa dos doentes torna ainda mais lucrativa esta área de negócios privados na saúde.

Diversos colégios médicos britânicos, como são os casos da cirurgia, oftalmologia e ortopedia têm vindo insistentemente a colocar preocupações quanto à qualidade dos cuidados aí prestados e à própria segurança dos doentes.

Quanto aos profissionais de saúde, o NHS tem uma escassez de 4.200 médicos generalistas (GP)

Os serviços de urgência hospitalar estão em permanente pressão.

Em 2023, 410.092 pessoas esperaram mais de 12 horas numa maca até conseguirem uma cama de internamento.

Num inquérito oficial realizado em 2023, cerca de 34% dos profissionais de saúde do NHS consideraram-se exaustos.

Por estas referências pontuais a alguns aspetos desse modelo de política de saúde na Grã-Bretanha, podemos desde logo verificar o seu enorme fracasso, não resolvendo nenhum dos problemas com que foi justificado perante a opinião pública. 

A medicina familiar com a riquíssima experiência dos médicos generalistas foi integralmente desmembrada e transformada num apêndice dos negócios das PPP, os indicadores de saúde têm sofrido um contínuo agravamento e o NHS é cada vez mais um serviço degradado para pobres e indigentes.

Na 3ª parte será abordada a situação noutros países.

Mário Jorge Neves, médico

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