A mentira, a boçalidade, a maldade, o ódio e o terror estão a tentar tomar apoderar-se do mundo, incluindo do nosso país, procurando impor-se como formas normais de estar na vida, seja na política, na sociedade, no trabalho ou na esfera pessoal. Banaliza-se cada vez mais o mal, desvalorizando e combatendo a necessidade de juízos críticos sobre o que é, ou não, conforme à Ética e à Justiça. Justificam-se todos os meios, por mais brutais e ilegítimos que sejam, com a pretensa legitimidade dos fins a alcançar. Assim, todo o “outro”, especialmente aquele que é ou pensa de forma diferente, é transformado num inimigo a abater sem dó nem piedade, por qualquer forma, mesmo a mais repugnante e cobarde. Instala-se a lógica do ataque em matilha, recorrendo à falsidade, ao insulto e ao ódio mais baixos, ao ataque verbal e até físico contra quem importa aniquilar, inclusive para “passar a mensagem” ao restante do rebanho: ou se aquietam, se curvam ou simplesmente se afastam, ou já se sabe o que lhes acontece.
As grotescas, mais violentas e perigosas aleivosias de Trump são um exemplo paradigmático deste fenómeno. Veja-se o último vídeo por ele partilhado nas redes sociais sobre a devastada península de Gaza, apresentada como um gigantesco “Hotel Trump”, com uma enorme estátua dourada do próprio Trump e Elon Musk a atirar notas ao ar.
Entre nós, há muito que, nomeadamente nas redes sociais, são exibidas, frequentemente com ar de triunfo e avidamente visionadas por inúmeros seguidores, imagens das mais violentas e cobardes agressões. Inclusive de jovens, muitos deles ainda adolescentes, que, nas escolas, se divertem em grupo a torturar e a espancar uma vítima indefesa e isolada. Na natureza, numa luta entre lobos, quando o mais fraco sente a derrota, mostra a jugular ao mais forte em sinal de rendição, e este satisfaz-se com esse gesto, cessando de imediato o ataque. No entanto, entre os humanos, quase todas as semanas surgem imagens de vários indivíduos a desferirem pontapés, inclusive na cabeça, sobre alguém que, indefeso, se encontra prostrado no chão. São, por exemplo, brutalmente impressionantes as imagens do assassinato do jovem agente da PSP Fábio Guerra à porta da discoteca Mome, em Março de 2022.
Os igualmente cobardes “feitos” dos grupos neo-nazis como o “1143” e o “Reconquista”, especialmente no Algarve, no Porto e em Guimarães, onde vandalizam tudo à sua passagem e encurralam e agridem violentamente imigrantes africanos ou asiáticos, são mais um exemplo dessa lógica do ódio pelo “outro”, seja ele um imigrante, um preto, um cigano, um homossexual, um muçulmano, um adversário pessoal ou político, ou simplesmente alguém que pensa e age de forma diferente.
Depois da absoluta e nauseabunda indignidade dos ataques e insultos directos do Chega à deputada socialista Ana Sofia Antunes e, pior ainda, dos cobardes “apartes” que se seguiram, soube-se que um energúmeno, dito “influencer” – seja lá o que isso signifique – gabou-se, entre as suas gargalhadas e as do entrevistador de então, ao volante e de telemóvel em punho, de ter atropelado violentamente uma mulher e de ter fugido do local sem lhe prestar auxílio. Confirmada a veracidade da façanha, e após a divulgação de mais uns quantos vídeos igualmente alarves, escapuliu-se para Angola.
É nosso dever indignarmo-nos com semelhantes atrocidades e manifestar o nosso completo repúdio por elas e por quem as comete. No entanto, embora isso seja importante e até necessário, não é suficiente para lhes pôr cobro. Devemos, assim, começar por compreender como e por que razão estes fenómenos – que, ao contrário do que alguns pregam, estão muito longe de ser incidentes, meramente pontuais – surgem e qual a forma consequente de lhes pôr termo.
Noam Chomsky já havia descrito, com assinalável argúcia, “As 10 técnicas de manipulação das massas”, apelidadas de “armas silenciosas para guerras tranquilas”. Entre elas, destacam-se as técnicas da distracção, da infantilização, do privilégio da emoção momentânea em detrimento da reflexão, da promoção e da mediocridade, bem como da auto-culpabilização e da omnipresença das tecnologias de informação. E todos nós, se quisermos e soubermos parar um pouco e irmos além da espuma dos dias – que nos é imposta diariamente em quantidades abissais e indigeríveis pela Comunicação Social e pelos feeds de pseudo-notícias das redes sociais – devemos fazer esse esforço de reflexão crítica.
Há um livro muito interessante – mesmo que não se concorde integralmente com ele – do sociólogo e historiador norte-americano Richard Sennett, intitulado A Corrosão do Carácter – As consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo, que mostra como a implantação e expansão do modo de produção capitalista na sua fase actual é acompanhada pela criação de uma ideologia própria que visa, e acaba por conseguir, corroer o carácter das pessoas. Todo o ideário que sustenta o sistema capitalista de produção procura impor a pretensa verdade de que este é eterno, que representa o “fim da história” e que “não há alternativa”. Ao endeusar o individualismo em detrimento do colectivo – precisamente porque a união e a organização são as armas fundamentais das classes exploradas e oprimidas – promove-se a ideia de que apenas através do sucesso individual se pode alcançar uma vida feliz e realizada. Aos que não o conseguem, resta apenas auto-responsabilizarem-se pelo seu “insucesso” e sujeitarem-se ao seu triste destino.
Servem o mesmo propósito ideias como as que defendem que a preocupação com os princípios e a distinção entre esquerda e direita são coisas do passado, e que, actualmente, o que importa é o pragmatismo – afinal, um termo pretensamente científico para mascarar o oportunismo daqueles que mudam de ideias como quem muda de camisa, consoante as conveniências do momento. Ou ainda a ideia de que todos têm um preço ou de que o único objectivo é alcançar o “sucesso”, utilizando para tal toda a sorte de meios, mesmo os mais pérfidos, nomeadamente para eliminar a “concorrência”.
Mas os “discursos motivacionais” e a lógica crua e impiedosa dos individualismos, que visam eliminar o “inimigo” a abater, têm de ser sempre complementados com a gestão científica do medo. Isto é feito através de práticas como o assédio moral, amplamente disseminado nas relações de trabalho, tanto no sector privado como – é preciso dizê-lo! – no sector público. Também se recorre à imposição deliberada de um ambiente de medo nas organizações mais fechadas ou hierarquizadas, como as militares, policiais e das magistraturas. Além disso, aproveita-se o profundo impacto psicológico decorrente de determinados acontecimentos, como um terrível acidente, uma catástrofe natural ou uma crise financeira ou sanitária.
É a chamada “Doutrina do Choque” do economista da Escola de Chicago – e, já agora, mentor ideológico de governos como os de Pinochet, Nixon, Reagan e G. W. Bush – Milton Friedman, que advogou o aproveitamento do profundo abatimento em que se encontrava a população mais pobre de Nova Orleães após o furacão Katrina, vendo nisso uma “oportunidade para reformar de forma radical o sistema educativo”. Em menos de um ano e meio, todo o sistema de escolas e hospitais foi convertido de instituições públicas em entidades licenciadas para privados, com despedimentos massivos dos respectivos trabalhadores, seguidos de recontratações de apenas alguns deles e com salários significativamente mais baixos. Esta “reforma” levou ainda à redução drástica dos direitos civis, desde logo o direito da educação igual para todos, afectando gravemente as populações mais pobres.
De forma muito similar, a “Doutrina do Choque” foi aplicada entre nós, primeiro durante a crise financeira, para aprovar as medidas do Memorando de Entendimento da tróica (e diversas outras que foram além do previsto), sob a constante ameaça da bancarrota. Mais tarde, voltou a ser utilizada durante a crise sanitária, justificando medidas supostamente de combate à covid-19, como os confinamentos e os recolheres obrigatórios, que se revelaram claramente inconstitucionais – conforme declarado pelo Tribunal Constitucional (embora só mais tarde), em 23 decisões!
A verdade é que, quando a crise é ainda mais grave e, do ponto de vista da classe dominante, se torna necessário salvaguardar os seus próprios interesses e margens de lucro, surge a necessidade de baixar ainda mais os salários reais, reduzir os direitos sociais e diminuir ou mesmo destruir serviços e sistemas públicos, como os de saúde e segurança social. Para tal, intensificam-se não apenas as estratégias de distracção, infantilização e mentira, mas também, e sobretudo, os instrumentos de repressão directa e imposição do terror. É neste contexto que a banalização, normalização e até legitimação dessas práticas se torna um corolário lógico da política que defende esses mesmos interesses.
Os grupos fascistas e neo-nazis – do Chega ao Ergue-te, passando pelo 1143, Reconquista e Habeas Corpus – desempenham o papel daquele que ameaça, rosna e até morde da forma que os seus verdadeiros donos precisam e desejam, mas que não lhes convém assumir, pelo menos para já e às claras.
Assim, insultar e ameaçar da forma mais soez uma adversária política cega, perseguir e orquestrar campanhas de assassinato de carácter contra cidadãos incómodos – aqueles que têm a espinha vertebral direita e que se recusam a ser dóceis ovelhas – acaba por ser desvalorizado e até desculpabilizado em nome – pasme-se! – das próprias liberdades democráticas, como a liberdade de expressão. A existência de organizações criminosas que não só perfilham ideologia nazi, mas também praticam actos de xenofobia, misoginia e até graves agressões físicas, é tolerada em nome… da liberdade de associação. A massiva imposição dos pontos de vista dominantes por uma Comunicação Social da qual praticamente desapareceu qualquer investigação, e que se transformou num simples “pé de microfone” das fontes institucionais, é defendida e justificada em nome da liberdade editorial e até da “protecção das fontes”!…
E é também assim que, em todos os sectores da sociedade, se vai tentando impor a “lógica da guerra”, onde os fins justificam os meios, onde tudo se aceita e se legitima, desde a censura (eufemisticamente designada de “despublicação” ou “cancelamento”) à mentira, passando pelo insulto e pelo discurso do ódio, apresentados, senão como algo aceitável, pelo menos como uma espécie de “mal necessário” para conter e desviar um movimento social de protesto e revolta crescentes.
A verdade é que há um número cada vez maior de pessoas que, não tendo condições de vida mínimas – seja de habitação, de saúde, de justiça, de educação, de salários ou de pensões –, querem romper com este estado de coisas e construir uma sociedade diferente. No entanto, propositadamente privadas do conhecimento crítico e despojadas da sua própria consciência social, tornam-se vulneráveis à gritaria histérica dos pretensos “anti-sistema”, como o Chega e quejandos.
Mas, ao contrário do que nos querem impingir à viva força, por toda a parte e por todos os meios, há alternativa a este estado de coisas. O combate sério e consequente a este processo de degenerescência política, social e ideológica não passa pela mera, abstracta e oca proclamação da Democracia, mas sim pela desmontagem, ponto a ponto e passo a passo, da entorpecente missa ideológica e propagandística com que somos narcotizados todos os dias. Passa também, e sobretudo, pela organização, pelo trabalho e pela luta colectiva.
António Garcia Pereira
Tem toda a razão; no meu entender há que dar força às tomadas de posição que não se verguem ao império do medo.
Extraordinário texto de um Grande Senhor, Advogado e Assistente Universitário, do qual guardo gratas recordações de alunos da FDL.