Puxe/Empurre
Respire.
De um lado da porta o sinal puxe, do outro, empurre.
Forças centrífugas e forças centrípetas colidem.
A esperança de ambos os lados. Aguardando não ficar esquecida.
Venho falar delas. Das forças, das mulheres, das artes. Das gestações. Dos partos. Da comunicação. Da beleza.
Sobretudo para agradecer a comunicação.
Este meu lugar de fala é um privilégio. Como mulher e como preta.
Friso estas duas condições humanas porque ambas têm andado de mãos dadas com o desprivilégio de serem consideradas inferiores, por gerações a fio. Elegi-as como minha raça, minha fé. Minha poesia.
O meu papel missionário é tirar-me dessa condição inferior.
Ou tirar-me da posição de missionária submissa na cama que partilhamos.
Como numa boa cama, procuro comunicar.
Como no sexo.
Por isso o meu lugar de fala é hoje um privilégio maior. Cheguei aqui tendo estado de ambos os lados da porta.
Vivendo na posição sem privilégio, absorvida pelas forças.
E estas na colisão com a evolução lançam luzes em vários sentidos.
A minha cama é uma cama na qual todos nos sentamos à volta ou em cima, a pensar na recuperação rápida das nossas muitas doenças.
Quero pensar que se torna dia a dia num continente que liga ilhas, puxando-as para o seu centro.
Através de técnicas de marketing, ou comunicação orgânica vendemos todos algo. Eu tenho urgência em vender histórias. Que são a minha raça, a minha garra, a minha fé, a minha poesia. Do lugar de ser mulher e preta.
Vendo-as pelo preço de um par de ouvidos que se preste e um coração atento. E consciência, claro. Sim, consciência.
Através da comunicação podemos chegar à consciência.
Gosto de pensar que estou aqui para partilhar a cama. Ou o continente.
Com as ilhas que me rodeiam, não pretendo estar num palco “ted talk” ou a influenciar, a receber aplausos ou “gostos”. Podem na minha cama entrar e sair em silêncio que não me incomoda.
Há os que procuram o desempenho acima da média para conseguirem parceiros (as), vulgo “gostos” e/ou seguidores.
A excitação vinda da dopamina.
Numa boa conversa na cama – continente e ilhas lembram-se? – num solilóquio, ou num prazer qualquer individual, não uso o botão “gostaste”? “foi bom para ti?”, nem quero saber quantos foram os gostos conseguidos na escala de ritcher (a escala para medir a intensidade de terramotos na cama da comunicação).
Todos sentimos a necessidade humana de oferecer pedaços. Uns escuros como os buracos no centro da galáxia, outros transparentes como seda.
No meu caso, os que vêm do meu lugar privilegiado de conhecimento de ser mulher e preta.
Com pontes de afectos ou a detonar o que é desumano.
E tem sido desumano, garanto-vos. Ser mulher e ser preta. Mal nos têm deixado respirar.
Diz-se que nascemos com pequenas capacidades e dons naturais e a vida fará sentido se as colocamos à disposição dos outros.
Veja-se o caso das artes neste ano singular.
No ano que conta os seus últimos dias, essas capacidades foram sendo partilhadas no zoom, nas redes sociais, nos programas e concertos virtuais.
Todos partilharam e, mesmo com fome, na mesa deram o que de melhor têm.
Azar dos Távoras, os egos inflamados (vistos nas redes sociais, hoje mal afamadas pelo excesso de maledicência, de ódios entre humanos com complexo de deus), acenderam guerras entre si e fazem-nos perceber que teremos de lidar com o nosso lado sombra, o nosso lado feio e doente.
Que na fome, rouba para si.
Este ano deixou-nos nús. Estamos na cama pública com a nudez. Somos o belo e o feio. Somos morte e somos vida.
E somos privilegiados porque humanos. Porque o Renascimento surge depois da Peste.
Nunca vi tanta generosidade. E nem nos meus muitos anos de África vi tanta hiena descontrolada. Ou estúpida.
Sem fazer uso da aplicação com que nasceu. O intelecto.
Os milandos sucedem-se a um ritmo alucinante e ninguém consegue acompanhar tantas indignações seguidas.
A violência acontece mais rápida que a queda da maçã na cabeça de Isaac Newton.
O que para mim revela a evolução a acontecer vertiginosamente. A lei natural do Universo que diz estar tudo ligado.
Grunhimos mais e comunicamos menos.
Fazemos mais gostos e mais corações e dizemos menos que amamos. Temos até vergonha de amar não vamos assustar alguém com isso.
O que é foda, como se diz fora da cama, em Português.
Mas também partilhamos mais saber e conhecimento ao serviço dos outros (ciência e vacinas), para servir a causa comum de evolução, para tornar a cama o continente que ligue as ilhas.
Outra foda que me deixa encantada.
Vem provar cientificamente que somos capazes de abrir a porta.
Estamos hoje mais conscientes das causas que a família humana tem deixado esquecidas – o racismo, as histórias verdadeiras da sua raiz, as mulheres esquecidas, as mulheres pretas esmagadas.
Relembrar e religar é a minha missão como mulher e preta.
Estamos a abrir a porta.
Em jeito de balanço como faço sempre (um exercício sexual entre mim e o intelecto, munida de emoções enquanto tento fugir e jogar às escondidas com as canções da época, chego ao resultado:
– vou abrir uma garrafa de rum para poupar água e combater o frio.
E celebrar a vida que me ensina estarmos sempre a fechar ciclos e a recomeçar outros.
A perder pessoas e a contar com as que ficam. São portas escancaradas.
Este ano, num ano particularmente violento a vários níveis, entre muitas histórias, a minha história favorita é a das mulheres e pretas que estão a cada dia a contar com a solidariedade das outras mulheres.
E ficaram vincadamente a contar com as mulheres que não têm a mesma cor.
Num movimento generalizado de esperança na desconstrução de preconceitos.
A porta vai-se abrindo.
A rolha de cortiça, que atirei para dentro d´água, em lugar de se afogar, saltou para a tona, boiando.
Assim é a esperança. Em mais e melhor humanidade.
Num lado da porta o sinal puxe, no outro, empurre.
Forças centrífugas e forças centrípetas colidem.
A esperança está nos dois lados.
Nem sempre um dos lados está aberto. Mas um dia, consegue.
Conseguiu sempre.
Estamos juntas. Juntos.
Decidi há muito, como mulher e preta que não mais me defendo ou justifico.
Essa é a força que os oponentes da evolução querem que eu gaste.
Apenas comunico.
A porta vai-se abrir.
Porque todos precisamos de emergir do trauma que passamos.
Em especial os mais desprotegidos, os esquecidos, os zés-de-ninguém.
As vidas que pouco ou nada têm importado.
Como a das mulheres e pretas.
Obrigada em particular a quem partilha comigo a comunicação, lendo e ouvindo.
Esta é a única capacidade que tenho e que sei fazer nesta cama.
Nela coloco pedaços de mim.
Agradeço a esta cama por nela ter presentes valiosos quando 2020 em ambos os lados da porta me presenteou alguns.
—
Anabela Ferreira
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