Já lá vai o tempo, o tempo distante, o tempo da escola primária com bata branca, meninos para um lado, meninas para o outro em que num sussurro me diziam que havia uns senhores que apareciam a qualquer hora do dia ou da noite e prendiam as pessoas.
“Mas prendem porquê? Devem ser pessoas más” perguntava eu,
“Prendem porque alguém lhes disse que alguém comentou ter ouvido dizer que a pessoa tinha feito ou dito alguma coisa que não é permitido” respondiam-me, uma vez mais em sussurro.
“E é verdade?” insistia eu,
“Na maioria das vezes não, mas isso não lhes importa!”. Teimoso e curioso voltava ao ataque
“Então, mas se não é verdade prendem-nos para quê?”, a resposta não se fazia esperar
“Prendem-nos para investigar!”. Mais tarde vim a descobrir que o investigar tinha um sentido diferente daquele que eu pensava.
Uma manhã quando ia para a escola disseram-me que nesse dia não havia escola, parece que havia uma revolução em Lisboa, o melhor seria regressar a casa.
Explicaram-me depois que essa revolução tinha servido para acabar com a ditadura, tinha servido para libertar o Povo, tinha servido para acabar com esses senhores que apareciam a qualquer hora da noite para prender primeiro e investigar depois.
Passaram 40 anos, essa manhã já vai longe, perdida e esquecida no tempo, a bata branca já não existe e a inocência foi-se perdendo ao longo das décadas. Ao longo dessas décadas muita coisa aconteceu, umas boas, outras menos boas, passou a haver liberdade, podíamos dizer o que pensávamos o que, diga-se em abono da verdade, por vezes é uma chatice. Passou a haver aquilo a que chamam direitos, liberdades e garantias.
Com o passar dos anos fui acreditando que quando alguém cometia um crime era investigado, julgado e, caso fosse considerado culpado, era condenado, havia excepções mas essas apenas confirmavam a regra e a sequência natural das coisas.
Na última década aprendi que o que ontem era verdade hoje é mentira, a sequência natural das coisas já não é uma regra, é uma excepção. Aprendi também que o merecido respeito às instituições já não existe, em grande parte porque elas, as instituições, não se dão ao respeito “A mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. Facto é que não parecem, começo mesmo a ter fundadas dúvidas que sejam.
Parece pouco séria a promiscuidade existente entre a justiça e a comunicação social. Parece pouco séria a figura da fuga de informação em permanente violação do segredo de justiça. Parece pouco séria a forma cirúrgica como as migalhas vão sendo dadas aos pombos (nós) que vamos ficando de papo cheio, com julgamento, condenação e transito em julgado concluído a partir das páginas dos pasquins ao serviço da pouco séria fuga.
As fugas de informação, as alegadas violações do segredo de justiça são perigosas, não só por elas próprias serem violadoras do código deontológico dos jornalistas como também por servirem para manipular e condicionar a opinião pública.
Recordemos os dois primeiro artigos do Código Deontológico do Jornalista:
- O jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.
- O jornalista deve combater a censura e o sensacionalismo e considerar a acusação sem provas e o plágio como graves faltas profissionais.
Não vale a pena comentar o mais recente caso de fuga de informação e de sensacionalismo mediático, esse o tempo dirá o que era verdade e o que era mentira nas fugas. Num passado recente já assistimos a outros casos em que se verificou que a fuga era intencional e falsa, nada se passou em relação a quem não cumpriu com as suas regras deontológicas, até tiveram como “prémio” a possibilidade de escrever a biografia do líder do regime. Para que serve a comissão de carteira? Será apenas para cobrar taxas e taxinhas? Não terá a obrigação de exigir, cumprir e fazer cumprir o código que personifica?
A desculpa das fontes anónimas quando se está perante falsidades tem de acabar, quero uma informação fiável, exijo uma informação séria e comprovada, não uma informação manipulada por interesses pouco claros.
As fugas de informação, em última instância, podem funcionar nos dois sentidos. A mais recente divulga que andam à procura de corruptores, talvez ajude colocar um anúncio no Expresso Emprego “Corruptor precisa-se”. A ser verdade esta fuga andaremos a brincar à justiça? Será que voltámos ao tempo de prender primeiro e investigar depois?
Para haver um corrompido é necessário haver quem corrompa, é necessário saber Quem? Quando? Como? Onde? O quê? Porquê?
Da mesma forma que não se pode escrever uma noticia sem responder a estas perguntas, alguns escribas nem sabem o que isto é, também não se pode fazer um julgamento, uma condenação sem uma prévia e sólida investigação. Não se pode prender as pessoas com base em suspeitas, sem culpa formada. Não se pode cair na tentação de pensar o tempo que estiveres lá dentro já ninguém te tira do lombo.
Levando esta questão a um estremo qualquer coisa servia para prender, sabe-se ou pensa saber-se o que se passou a jusante mas desconhece-se o que se passou a montante. Diz-se corrupção mas podia dizer-se tráfico de armas, droga ou outra coisa qualquer. Na falta de provas a montante tudo servia para justificar o que se passou.
Cuidado, este País está a ficar perigoso! Há neste momento nas prisões portuguesas 2.385 presos preventivos. Muitos ainda longe de terem uma acusação e, por maioria de razão, um julgamento e consequente condenação, ou não. Muitos que foram presos primeiro e serão investigados depois.
A vantagem que têm estes casos mediáticos é alertar-nos para a realidade que se passa para lá das páginas dos jornais, uma realidade que não pode continuar.
Alguém sabe quantas pessoas estavam presas primeiro para serem investigadas depois há 40 anos atrás? Menos de um milhar!
Este País está a ficar perigoso!
Estão a decorrer neste momento 60 buscas em casas e escritórios relacionadas com o BES, surpreendente a dualidade de critérios. então Ricardo Salgado, o Dono Disto Tudo (DDT), com o valor duma gratificação (para quem recebe como prenda 14 milhões, 3 milhões são gratificação) pode andar a passear e não há perigo de fuga, de perturbação do inquérito nem de continuação da actividade criminosa. Neste caso já se pode voltar ao curso normal das coisas? Investigar, julgar e condenar.
Vá lá alguém entender isto… Deve ser uma questão de crença!
O DDT também foi “vitima” da mediatização da justiça, foi informado de véspera que ia ser presente ao juiz e quando disse que ia lá ter disseram-lhe que não que o iam deter. Estranha simpatia, informa-se de véspera alguém que vai ser preso e poupa-se-lhe o custo do transporte, aproveitando para garantir a presença da comunicação social no reencarnar dos espectáculos dos Coliseu de Roma.
Bem sei que não há neste País, ou há poucos, quem não se babe e regozije quando vêem um “poderoso” a ser engavetado mas cuidado, é que os direitos, liberdades e garantias deles também são os nossos e quando não se respeitam esses direitos, essas liberdades e essas garantias dos poderosos será que podemos esperar que respeitem os nossos?
Este País está a ficar perigoso, nós aplaudimos em delírio, da mesma forma que faziam os romanos no seu circo esquecendo-se que um dia podiam ser eles, sem razão, a estar na arena.
A justiça não pode ser uma questão de crença, a justiça não se faz acreditando que a verdade fala sempre mais alto. A verdade não fala, é muda, não se pode esperar que ela nos apareça à frente de forma divina no meio duma procissão. É preciso procurar a verdade, encontrando-a é necessário confirmá-la e depois sim julgar e condenar.
Este País está a ficar perigoso, a idade da inocência há muito que terminou. Como cantou Zeca Afonso, O País vai de carrinho, nós muito contentes e sorridentes ajudamos e vamos empurrando o carrinho.
Será que voltaram os tais senhores que a qualquer hora do dia ou da noite prendiam primeiro e investigavam depois?
Se o Adolfo pudesse, Ressuscitar em Abril, Dançava a dança macabra,Com os meninos nazis.
Mas não se esqueçam do tacho, Que o papá vos garantiu, Ao fazer voto perpétuo, De ir prà puta que o pariu!
Excelente post. Quando tiver tempo sugiro um tema tambem interessante: As falsas fugas de informação – como uma boa equipa jornalistica consegue descobrir coisas que todos sabem mas nem a policia diz( ex: Luxeleaks, Casapia)
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