Não seguramente por acaso, os principais apoios, financeiros e logísticos, do recém-empossado Presidente dos EUA, Donald Trump, são os multimilionários Mark Zukerberg (dono da Meta, que inclui as redes sociais Facebook e Instagram) Elon Musk (dono da rede X, anteriormente designado de Twitter) e Jeffrey Bezos (dono da Amazon e do Washington Post).
Ora, o bem mais precioso que o Facebook, o Instagram e o X obtêm, tratam, utilizam e vendem não é um bem físico, por mais valor de mercado que este possa ter. Trata-se, antes, de algo muito mais valioso e rentável, quer económica como politicamente: informação. Ou seja, o vasto conjunto de dados que, diariamente, é recolhido, tratado e utilizado sobre cada um de nós, desde os elementos de identificação tradicionais, como nomes e moradas, até informações sobre os nossos cartões de débito e crédito, contas bancárias, pagamentos e despesas. Incluem também as nossas relações pessoais, familiares, sociais e profissionais, assim como os nossos gostos, preferências políticas, religiosas e desportivas. E o Washington Post – que alcançou 2,5 milhões de assinantes no 3º trimestre de 2024 – produz conteúdos consumidos em todo o mundo, evidenciando o impacto global do acesso a informação personalizada e direccionada.
Isto significa que apenas nos chega a “informação” (ou, na verdade, a contrainformação) que os seus controladores querem que nos chegue, levando-nos, cada vez mais, a desejar e a aceder apenas ao que nos habituaram a consumir passivamente, num processo que é largamente facilitado e impulsionado pela degradação dos sistemas de Educação, pela ditadura dos ecrãs, pelo crescente simplismo e empobrecimento da linguagem (ferramenta indispensável para a formação e desenvolvimento do raciocínio), pela aculturação e pelo abandono do espírito crítico.
Gostar de ler um livro, pensar criticamente sobre o que nos é apresentado como verdade, desejar conhecimento – algo bem distinto de nos serem servidas toneladas de (alegada) informação –, defender e praticar a Cultura, e conceber a vida em sociedade como um diálogo permanente com o outro são atitudes desprezadas, criticadas e até ridicularizadas por um “pensamento” – leia-se, ideologia – que alia o individualismo extremo à passividade, à infantilização e, em última instância, à imbecilização dos cidadãos que se querem controlar, dirigir e explorar.
Um exemplo deste processo de aculturação e desumanização é o espectáculo deprimente de famílias inteiras que vão jantar fora e, durante quase todo esse tempo, não trocam entre si uma palavra ou sequer um olhar. Cada membro da família passa a refeição agarrado ao seu telemóvel, a ver (mais até do que a ler…) as últimas do feed de “notícias” da rede social da sua preferência. Mas é disso exemplo também a crença popular na pretensa veracidade de tudo o que é dito ou escrito numa rede social ou na televisão, pelo simples facto de aí ter sido veiculado, abrindo assim por completo o campo à prática generalizada – e, em alguns casos, até profissionalizada – da manipulação e da mentira.
Por seu turno, o jornalismo tradicional foi, na sua maioria, substituído pela predominância de meros relatores dos comunicados de imprensa ou informações ministeriais, estando, por isso, permanentemente empenhados em manter satisfeitas essas fontes “institucionais”, sejam elas da Política, da Justiça, da Saúde ou do Desporto. Isto é evidente na imprensa mais sensacionalista, mas também em grande parte da chamada “imprensa de referência”, para a qual é crucial manter intacto o fluxo informativo entre o assessor (quase sempre um ex-jornalista investido nessas funções…) e o jornalista.
Seria, aliás, muito interessante realizar um estudo sério e rigoroso sobre o tipo de notícias publicadas nos tais jornais ditos “de referência” e nas televisões, bem como sobre o tipo das respectivas fontes, sobre, por exemplo, processos judiciais e as suas persistentes violações do segredo de Justiça, o que permitiria traçar um perfil dos interesses que são beneficiados com cada uma das publicações e, consequentemente, dos “vasos comunicantes” entre o discurso desses interesses e o que, invocando sempre o chamado interesse público, é efectivamente publicado.
Outra das “técnicas” frequentemente usadas pela Comunicação Social dominante, e não só, para justificar a apropriação, para fins privados, do espaço público de discussão, bem como a expulsão dos divergentes, é a “etiquetagem” destes com um rótulo (por exemplo, “extremistas”, ou “da esquerda radical”), pretendendo-se, desta forma, “justificar” à partida a sua exclusão – afinal, se os autoproclamados detentores da verdade decidem atribuir tal “etiqueta” a alguém, a discriminação e exclusão dessa pessoa passam a ser, “por natureza”, legitimadas…
A esta realidade junta-se a utilização massiva de estagiários, que, quanto mais ignorantes, baratos e dóceis forem, melhor. A estes, é fácil encomendar tarefas, como fazer a reportagem ou a entrevista apenas nos moldes que interessam aos responsáveis pela edição (como se viu, de forma tão evidente quanto lamentável, na cobertura, durante horas a fio, dos acontecimentos no Largo do Intendente, no dia seguinte à grande manifestação anti-racismo e anti-xenofobia do dia 11 de Janeiro).
Há mesmo uma verdadeira degradação do que é, ou deveria ser, a profissão de jornalista, especialmente quando se fala em “jornalismo de investigação”, como se toda a actividade jornalística não devesse ser investigatória por natureza: em vez de se limitar à reprodução das tais fontes especiais, o jornalismo não se deveria centrar na verdadeira e rigorosa averiguação dos factos?
Mas a verdade nua e crua é que os jornalistas que não aceitam transformar-se em escribas do Poder são empurrados para a rua, tanto cá dentro como lá fora. Foi assim que Ann Telnaes, cartoonista doWashington Post (outrora apresentado por alguns como uma espécie de “farol” da liberdade de informação) e vencedora de um Prémio Pulitzer, se viu levada a demitir-se após a censura de um cartoon da sua autoria, que retratava vários milionários, incluindo o dono do jornal, Jeff Bezos, a prestar vassalagem e a entregar dinheiro a Donald Trump. Entre nós, semelhante atrocidade não só não mereceu praticamente qualquer debate, como houve até quem – como o jornalista e Director Interino do “Sol”, Vitor Rainho – considerasse, com toda a clareza, que Ann Telnaes deveria ter sido demitida porque “no século XXI ninguém investe na Comunicação Social para ser atacado pelos seus funcionários” e porque “os jornalistas… não falam dos patrões, nem bem, nem mal” (sic).
Uma vez chegados a este ponto, houve quem, ainda que ingenuamente, julgasse que as redes sociais, aparentemente não sujeitas a este tipo de lógicas e de medidas, poderiam constituir um último refúgio da liberdade de expressão e de informação.
Mas essa ilusão – que, aliás, se pagou bem caro – tem vindo a ser progressivamente desfeita. Por um lado, porque o modo de funcionamento dessas redes sociais propiciou, a uma escala porventura inimaginável há alguns anos, o desenvolvimento da lógica de “caça às bruxas” e das mais nefandas campanhas de ódio e operações negras de homicídio de carácter.
Já não se trata apenas de, como bem referiu Umberto Eco, dar a palavra ao imbecil que antes disparatava na taberna e que agora fala para todo o mundo. Como já não se trata apenas de – como a extrema-direita, como o Vox em Espanha e o seu “pupilo” Chega em Portugal, rapidamente aprendeu a usar – mobilizar autênticos exércitos profissionalizados de trolls,cuja função é, designadamente por meio de identidades falsas e de bots ou de repetidores automáticos de publicações, atacar a dignidade de quem não gostam ou criar a ilusão de pretensas “vagas de apoio” às suas próprias posições.
Trata-se, acima de tudo, de quem detém os dados da informação os utilizar para produzir e divulgar em massa determinados conteúdos, concebidos para induzir comportamentos específicos (seja, prosaicamente, incentivar a compra de certos produtos, seja promover o apoio a certas posições ou votos em certos candidatos). Simultaneamente, sob o pretexto “científico” do automatismo dos algoritmos, filtra-se, desvaloriza-se ou até apaga-se do mapa as opiniões e pontos de vista considerados críticos.
O escândalo envolvendo os dados de cerca de 90 milhões de utilizadores do Facebook, obtidos pela Cambridge Analytica a partir de 2014 e cedidos a dirigentes e entidades políticas (como Ted Cruz, por exemplo) para estes influenciarem a opinião dos eleitores foi paradigmático do que se passa hoje.
Em Setembro de 2024, o conhecido Cox Media Group – um grupo de comunicação dos EUA e parceiro da Google – admitiu publicamente que possuía um software capaz de aceder aos microfones dos telemóveis, permitindo uma “escuta activa” em tempo real. Ou seja, abrangendo não apenas as conversas telefónicas, mas também tudo o que fosse dito em seu redor e em tempo real. A Cox sustentou então – embora sem oferecer qualquer garantia de que assim fosse – que os dados recolhidos eram usados “apenas” para fins comerciais, permitindo definir conteúdos e estratégias de publicidade direccionadas aos públicos-alvo em função do que era ouvido. Muitos de nós já nos teremos apercebido de que, após mencionarmos, ao telefone ou com este por perto, algo tão trivial como o desejo de fazer uma viagem, a necessidade de comprar comida para o cão ou um colchão novo, no dia seguinte o feed da rede social que usamos é inundado de anúncios relacionados com viagens, comida para cães ou colchões. Contudo, até àquela pública denúncia, os que já desconfiavam e apontavam estas assustadoras situações eram prontamente silenciados e rotulados de míseros “adeptos das teorias da conspiração”.
Torna-se, assim, cada vez mais evidente que aquilo que nos é diariamente apresentado como pretensa “informação” não passa, afinal, e em larguíssima medida, de manipulação ou mesmo contrainformação. Estas práticas, aliadas a uma “gestão científica do medo” e à imposição da sinistra lógica de que “não há alternativa”, criam, assim, um estado de estupor e incapacidade de reacção. Desta forma, tornam-se instrumentos poderosíssimos para a defesa dos interesses dominantes e o exercício do poder, revelando-se bastante mais eficazes do que os métodos “clássicos” das ditaduras terroristas, como era, entre nós e durante a Ditadura, a censura imposta pelos coronéis do “lápis azul” a que todas as publicações, espectáculos, programas de rádio e televisão e actividades culturais estavam sujeitas.
Com a intencional falsificação da realidade dos factos – como é o caso gritante das coberturas televisivas ocidentais sobre o genocídio em Gaza – e a contratação de “comentadores” que não têm qualquer pejo em afirmar as maiores barbaridades (como a de que “Não há fome e não há sede em Gaza. Nunca houve fome em Gaza. Até há gordos na Faixa de Gaza”), juntamente com os feeds de notícias das redes sociais a disseminar essas mesmas “verdades” e os exércitos de trolls a atacar e insultar, ao mais baixo nível, aqueles que discordam ou divergem, completa-se assim o quadro repressivo e censório.
Assistimos, ainda, à crescente imposição de uma lógica tão demagógica quanto reacionária, que atribui todos os males que afligem a maioria das pessoas – especialmente as que trabalham – aos “outros”, e, muito em particular, aos “diferentes”, aos que têm uma distinta raça ou etnia, ou aos imigrantes. Apontados como “inimigos”, estes acabam, paradoxalmente, por ser os que executam os trabalhos mais duros e pior remunerados, ao mesmo tempo que servem como instrumento de pressão para o abaixamento dos salários de todos os restantes!
O empolamento da gravidade das situações, a descarada manipulação (até mesmo de dados objectivos, como os estatísticos), a produção de falsidades e a deliberada criação de um clima de terror e hostilidade contra os pretensos “inimigos” fazem com que a acção social e política, as actuações policiais e a própria Comunicação Social passem a funcionar sob uma autêntica “lógica de guerra” em que vale tudo, em que a suposta legitimidade dos fins passa a justificar quaisquer meios, por mais ilegítimos, ilegais ou até brutais que estes sejam.
E assim, nesta fase da evolução do capitalismo imperialista, mesmo as acções mais horrendas (desde os bombardeamentos com napalm sobre aldeias civis inocentes, no Vietnam ou nas colónias portuguesas, até ao genocídio de palestinianos na Faixa de Gaza, passando pelas brutalidades e homicídios policiais contra cidadãos indefesos) são justificadas por uma legião de comentadores arregimentados e pagos para esse fim. Ao mesmo tempo, todas as vozes discordantes são ou completamente censuradas, ou, no mínimo, afastadas dos horários e das páginas “nobres”, sendo relegadas para uma quase clandestinidade.
Com a recente eleição de Trump e o papel reforçado que ele atribuiu aos donos da Comunicação Social a nível mundial, este processo tende a agravar-se ainda mais. Os seus homens de mão sentir-se-ão, porventura, autorizados a ir ainda mais longe nos discursos de ódio e fanatismo, nos ataques aos imigrantes e nos homicídios de carácter daqueles que ousarem opor-se a eles. E, embalados nessa embriaguez do Poder, estarão até convictos da sua permanente e total impunidade, que julgam eterna.
Mas eles e os seus donos esquecem, afinal, um “pequeno” pormenor: em situações como estas, embora alguns escolham render-se e colaborar com a barbárie (como fez Pétain em França, em 1940, aquando da invasão nazi), sempre houve, e sempre haverá, aqueles que, desafiando o poderio dos que possuem a força bruta do seu lado e enfrentando toda a espécie de dificuldades, optam por resistir e combater. E são esses, afinal, que, contra todos os Trump, Musk, Bezos, Zukerberg e Venturas deste mundo, estão do lado certo da História!
António Garcia Pereira
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