Os tempos que correm e… não param! (2ª parte)

Mário Jorge Neves (Foto FNAM)

Nestes últimos 50 anos verificaram-se profundas mudanças nas sociedades.

A mudança sempre esteve presente ao longo da história das diversas civilizações.

Há 2500 anos, o filósofo pré-socrático Heraclito de Éfeso, cidade da Jônia, atual Turquia, escreveu que:

– Nada é permanente, exceto a mudança.

– Tudo flui. Tudo está em movimento e nada dura para sempre.

– Ninguém entra em um mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas já serão outras.

Heraclito é considerado o “pai da dialética” e desenvolveu a doutrina da unidade dos contrários, considerando que a “lei secreta do mundo” reside na relação de interdependência entre dois conceitos opostos em luta permanente, mas que, ao mesmo tempo, não podem existir um sem o outro. 

Só que nos tempos atuais, a mudança apresenta ritmos muito mais acelerados e com repercussões mais profundas.

A progressiva hegemonia politica, económica, ideológica e cultural do chamado neoliberalismo, representou a liquidação do chamado período de ouro do capitalismo internacional, particularmente no continente europeu, e tem provocado um crescimento contínuo das desigualdades sociais e do desemprego, além de criar condições muito claras para este recrudescimento da extrema-direita.

As desigualdades sociais para além dos aspetos de equidade e de justiça sociais colocam como problema principal um efeito brutal de corrosão da sociedade.

Desde o início deste processo, que um dos objetivos nucleares das forças neoliberais foi impor gradualmente, com a intervenção massiva de grandes meios de comunicação, uma cultura ideológica de um individualismo extremo.

Os grandes meios de comunicação social converteram-se em organizações socioeconómicas que se dedicam a fabricar formas padronizadas de consciência. 

O individualismo neoliberal corrompeu a noção do bem comum e a necessidade de construir sociedade integradas.

Como disse num famigerado discurso M. Thatcher “ não há sociedade, somente indivíduos e família”.

A atual crise das democracias deve-se à desigualdade e ao individualismo que têm destroçado o consenso social mínimo.

 O predomínio do individualismo conduz à perda da noção do “nós” e acaba com as bases do sistema democrático.

As democracias requerem um projeto comum para as manter firmes, estáveis, solidárias e coesas.

As democracias não requerem somente o crescimento económico e o bem estar social, exigem também uma política redistributiva que as mantenham viáveis e estáveis.

Quando os vínculos entre o Estado e os cidadãos se debilita, a coesão social fica em perigo.

Quando o bem comum deixa de ser um objetivo, cresce a desconfiança no regime democrático.

 A noção de sociedade, assim como dos sistemas democráticos, fundamentaram-se numa cultura desenvolvida em torno do trabalho.

Anteriormente, vivemos num mundo onde o estatuto social andava ligado a um trabalho estável, a uma profissão definida e com uma remuneração condigna.

Na década de 1990 produziu-se uma grande rotura.

Com a destruição das grandes indústrias não desapareceram somente muitos postos de trabalho, mas também uma cultura laboral e de cidadania ligadas à solidariedade, à dignidade e às perspetivas de emancipação.

Tem desaparecido a cultura solidária entre trabalhadores e aumenta o número de precários, fragmentados e sem vínculos nem identidade estabelecida, que os coloca à margem do debate político e social.

O trabalho precário tem conduzido a uma profunda erosão da composição social do trabalho, bem como à deterioração dos valores solidários que são fundamentais para a organização política na luta social emancipatória.

O trabalhador precário é um indivíduo isolado que não possui uma identidade concreta alicerçada no trabalho e não dispõe da noção de pertencer a uma comunidade laboral baseada em práticas estáveis, com códigos éticos de relacionamento reciproco e de fraternidade.

Esta situação determina uma sensação de ostracismo e de desenraizamento social com repercussões violentas nesses setores laborais.

As pessoas têm ficado mais debilitadas na sua vontade de protesto porque a precariedade, a angústia e a competição no trabalho para assegurar o seu posto de trabalho, não facilitam assumir a sua autonomia de decisão e o cultivo de valores solidários.

Nos últimos anos surgiu ainda uma nova modalidade de trabalho, designada “nomadismo digital “ que conduz a um isolamento e individualismo extremos.

As classes médias têm sofrido uma enorme erosão e têm sido arruinadas pelas políticas de austeridade e de alterações profundas em várias áreas laborais.

O mundo digital tem desmantelado o universo produtivo industrial ao longo da segunda metade do secº XX.

 O progresso tecnológico, a robotização progressiva do processo produtivo, fazem prever necessidades de efetivos menores que os atuais, com fortes impactos negativos no emprego.

A globalização e as mudanças tecnológicas acabaram com o mundo que conhecíamos antes desta hegemonia neoliberal.

Os trabalhadores têm estado submetidos a intensas campanhas ideológicas com o claro objetivo de alienarem a sua consciência e de os despojarem dos seus princípios e valores.

Numa primeira fase passaram de trabalhadores a “recursos humanos” e com o apogeu neoliberal foi-lhes colocado o rótulo de “colaboradores”.

Neste contexto político, social, cultural e económico tão profundamente alterado, o que tem acontecido às forças político-partidárias progressistas situadas à esquerda?

Nuns casos, verifica-se uma dramática capitulação político-ideológica ao neoliberalismo mais belicista e predador dos direitos sociais.

Noutros, os seus níveis dirigentes não conseguem analisar a realidade concreta da sociedade atual, não conseguem caracterizar adequadamente os contextos políticos, sociais e económicos, não conseguem adaptar-se aos novos contextos, nem adequarem, por isso, a sua intervenção quotidiana.

Nesse sentido, as suas mensagens não são compreendidas pelos potenciais destinatários e os apoios eleitorais vão diminuindo preocupantemente, retirando-lhes qualquer capacidade de intervenção na resolução dos problemas fundamentais da sociedade, a começar, desde logo, na defesa da democracia e da liberdade

À medida que vão perdendo apoios nas populações e veem diluir a sua base social de apoio, têm enveredado por uma deriva sectária e esquerdista, convencidos que são os guardiões supremos da “pureza ideológica”.

Mantêm uma linguagem e uma abordagem político- ideológica dos problemas laborais e sociais inalteradas ao longo dos últimos 50 anos.

Com o seu crescente isolamento, optam por uma atitude de dogmatismo que a nível da esquerda se manifesta por repetições de fórmulas e decalques de modelos de ação concebidos para situações muito específicas.

Afundam-se num sectarismo político, que diz mais respeito a condutas de intervenção política do que a um escasso número de aderentes. 

Como sabemos, o sectário exibe o gosto pela separação do resto e um prazer pela diferenciação que o coloca no polo oposto à pluralidade de opiniões progressistas. Simultaneamente, confunde a firmeza de ideais com a agressividade verbal.

Existem ainda outros setores que abandonaram as preocupações e as lutas coletivas para se refugiarem em individualismos identitários. 

Prestam mais atenção à identidade do que à situação social de pobreza.

As correntes identitárias, priorizam a subjetividade do grupo e as emoções em lugar da razão.

A primazia das lutas identitárias em relação à desigualdade, à pobreza e aos mecanismos de acentuação da exploração do trabalho de cada um, não constitui nenhum contributo válido para o progresso social e para a superação dos atuais e graves problemas sociais e económicos. 

Acaba com a noção de cidadania comum, de aspirações coletivas, de um projeto coletivo e debilita a capacidade política transformadora.

Nega um compromisso universalista e uma noção de cidadania global, acabando por incorporar o individualismo neoliberal.

A perda de referências fundamentais torna o ambiente político irracional.

Torna-se muito curioso que num momento em que as desigualdades, a polarização das sociedades e a pobreza são cada vez maiores, a esquerda tem ficado mais debilitada nas últimas décadas.

Ora, ser de esquerda é ter um projeto comum para superar a desigualdade estrutural, a exclusão e possibilitar uma vida digna.

Ao contrário do que afirmam os assalariados neoliberais, a classe trabalhadora continua a existir e com contingentes numéricos sempre em crescimento, mas aquilo que mudou, e muito, foi a sua consciência profissional e social.

Se há 2500 anos o Heraclito falava da mudança, o nosso grande poeta Camões também dizia:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança,

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades.

Sendo tudo isto é tão evidente, como é possível que aquelas forças políticas que se reclamam de esquerda sejam incapazes de “ler” as novas qualidades que o mundo vai tomando?

Mário Jorge Neves, médico

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