O pântano está aí!

Quando, há cerca de dois anos e meio atrás, perante as ideias, medidas e práticas que começaram então a ser adoptadas a pretexto do combate à pandemia, algumas (poucas) vozes alertaram para os riscos que delas adviriam para uma sociedade democrática, poucos foram os que lhes deram ouvidos. E o que imperou a partir de então foi a lógica do facto consumado, a ideia-mestra de que os fins justificam os meios, mesmo os mais ilegítimos e até ilegais e inconstitucionais, o império do medo e da censura sobre tudo o que ousasse divergir do pensamento e da “ciência” oficiais, enfim, a imposição à força da ideologia (e da prática) do “manda quem pode, obedece quem deve” (dos tempos do fascismo), do “não há alternativa” (da época da tróica) e ainda a de que todos os divergentes ou minoritários não passariam de agentes do obscurantismo ao serviço de interesses inconfessáveis, que merecem e devem ser expurgados.

Com a progressiva narcotização da consciência colectiva, os grandes poderes, públicos e privados, trataram de apresentar e impor como o “novo normal” a destruição de algumas das mais elementares liberdades cívicas (como, por exemplo, a liberdade de expressão), e o desrespeito e até a perseguição inquisitorial – não baseada na discussão de ideias, mas sim nos escolásticos argumentos de autoridade e no puro apelo ao ódio e ao silenciamento – relativamente às correntes de opinião minoritárias. Corroeu-se a memória colectiva, amaciou-se e entorpeceu-se a capacidade de reflexão crítica e preparou-se assim o terreno para que as maiores barbaridades anticívicas e antidemocráticas pudessem ser cometidas, senão com o aplauso da maioria, pelo menos com a sua passividade e o seu silêncio.

Os resultados, absolutamente desastrosos para os cidadãos comuns, em particular para os que vivem do seu salário, estão cada vez mais à vista e, todavia, os principais responsáveis por eles prosseguem nas suas bem amanhadas vidas, sem um pingo de vergonha na cara e não raras vezes cuspindo impunemente na nossa inteligência. Na verdade, a inflação atinge já os 10,2%, enquanto, sob a voz grossa dos patrões do Estado e do Estado dos patrões, os reais aumentos dos salários e das pensões nem a metade disso chegam. De acordo com a DECO/Proteste, um cabaz básico de 63 produtos essenciais aumentou, entre Fevereiro e Outubro deste ano, de 183,63€ para 214,30€ (17%). Fruto de uma política de seguidismo da União Europeia relativamente aos EUA (também) na questão da guerra na Ucrânia, o Banco Central Europeu aumenta violentamente as taxas de juro e com isso determina um ainda maior endividamento das famílias portuguesas aos Bancos, estando já hoje centenas de milhares delas ameaçadas de despejo por falta de pagamento das respectivas prestações. O número de cidadãos abaixo do limiar mínimo de pobreza não cessa de aumentar de forma assustadora, ascendendo actualmente a cerca de 1/4 (2,4 milhões de pessoas) do total da população. A chamada “crise energética”, com a dependência europeia cada vez maior da indústria americana do petróleo e do gás de xisto (a grande beneficiária, juntamente com a das armas, da guerra na Ucrânia) está a conduzir a uma galopante subida dos preços, tornando ainda mais insustentável a vida do cidadão comum. Tudo isto, enquanto as grandes empresas de todos esses sectores, como todos os Bancos, Galp, EDP, Jerónimo Martins-Pingo Doce e Sonae-Continente, sempre com “a guerra” e as supostas “grandes dificuldades económicas” na boca, acumulam gigantescos e pornográficos lucros.

E, todavia, fruto precisamente do processo de amordaçamento das vozes críticas e incómodas, da anestesia e desmoralização colectivas, e – é forçoso reconhecê-lo! – da incapacidade ideológica e de mobilização dos partidos e forças que se dizem de esquerda e defensores dos trabalhadores, reina hoje entre nós uma enorme e lamacenta quietude. Praticamente sem protestos, manifestações ou greves dignas desse nome, os dirigentes e forças políticas, sociais e económicas responsáveis por este calamitoso estado de coisas, bem cientes de que a grande maioria da Comunicação Social (exceptuados alguns episódios menores que somente servem para entreter e para dar a ideia de que até existiria algum debate e alguma oposição neste pobre país…) só permitirá que passem e sejam difundidas  as posições “oficiais”, prosseguem a sua acção na maior das impunidades e, não raras vezes e com a maior desfaçatez, riem-se na nossa cara. E aquilo que era verdadeiramente importante que se discutisse, de forma intelectualmente séria e aprofundada, vai assim, mais e mais, ficando para trás…

Há pouco mais de três meses, o Tribunal Constitucional declarou, em várias decisões[1], a patente inconstitucionalidade – que havia sido sempre denunciada por alguns “minoritários”, logo silenciados pelo pensamento e imprensa dominantes… – de várias normas da chamada “legislação Covid”, e designadamente da que determinava o a confinamento obrigatório dos cidadãos colocados pelas autoridades de saúde na situação da chamada “vigilância activa” e da que agravava as penas aplicáveis a quem desobedecesse às autoridades quando estas lhe ordenassem um recolher ou confinamento obrigatório. Essas decisões afirmaram uma coisa tão simples quanto basilar do ponto de vista democrático: sejam quais forem os objectivos ou pretextos que se invoquem, mesmo em estado de emergência, e por maioria de razão em estado (menos grave) de calamidade, a Constituição da República continua a vigorar e, por força disso, os direitos, liberdades e garantias só podem ser suspensos por via de lei (e não por meros actos administrativos como Resoluções do Conselho de Ministros) e da autoria da Assembleia da República, ou do Governo, mas, neste caso, sempre com autorização legislativa do Parlamento. Fazer como fez o governo de António Costa, ou seja, tratar de restringir direitos ou agravar penas por mero acto governamental, consubstancia um atropelo grave à Lei Fundamental do país. 

E soube-se, entretanto, que o Tribunal Constitucional produziu 23 (vinte e três!) decisões de inconstitucionalidade e que nalguns casos o Governo já sabia que a sua forma de actuar fora declarada contrária à Constituição, mas, numa postura de acintoso desrespeito, optou por reincidir na aprovação do mesmo tipo de medidas, como as quarentenas obrigatórias e os encerramentos impositivos de estabelecimentos comerciais!

Temos, pois, um Governo que actua como um vulgar fora-da-lei, contando com a cumplicidade de todos os que tinham a responsabilidade de se lhe ter oposto, mas que, por concordância, comodismo ou até cobardia, não o fizeram. 

Isto torna-se particularmente grave quando, com base nesses actos inconstitucionais do Governo, inúmeros cidadãos se viram ilegitimamente privados dos seus direitos e liberdades fundamentais, sujeitos a ilegítimas prisões domiciliárias, alvo de insultos, ameaças, perseguições e mesmo detenções policiais, tendo alguns sido mesmo julgados e condenados a penas de prisão. E esses mesmos cidadãos e todos aqueles que ousaram na altura suscitar as questões das inconstitucionalidades, assim recentemente declaradas pelo Tribunal Constitucional, foram então caluniados, apelidados de “negacionistas” e de “adeptos das teorias da conspiração”, acusados de estarem a sabotar o combate à pandemia e, consequentemente, ostracizados e silenciados.

Mas é obvio que nada disto ocupa um segundo que seja daqueles que, em nome da tristemente famigerada tese de que “em tempo de incêndios não se atacam os bombeiros”, têm sempre ajudado à imposição na prática da sinistra e nazi teoria de que a invocação da alegada legitimidade dos fins justificaria afinal todos os meios. 

Assim se tem vindo a abrir o caminho para a impunidade e para a ausência de reacção colectiva perante abusos e despautérios dos poderes dominantes. Porque, tal como alguns (poucos) tiveram a coragem de afirmar, esta imposição da lógica do facto consumado, de que quem discorda deve ser visto como um inimigo a abater sem piedade e não como um divergente ou um adversário, da recusa do debate franco, aberto e igual entre as diferentes correntes de opinião e da sua substituição pelo permanente apelo ao ódio e aos instintos mais básicos e primários (em que se não discutem ideias mas se ataca, rebaixa e humilha o outro), tudo isto iria ter consequências gravíssimas e de uma extensão incalculável.

A partir daqui, e de par com o apagamento da memória e de entorpecimento da capacidade crítica, esta involução política e social tem feito, por exemplo, com que quem critique a actuação das autoridades governamentais e administrativas no combate à Covid-19 não seja sequer ouvido, antes seja imediatamente fulminado com os epítetos de “anti-vacinas”, “negacionista” e “anti-ciência”, ou que quem discorde da posição da União Europeia, a reboque da dos EUA, sobre a guerra na Ucrânia seja fulminantemente enlameado com a calúnia de ser “putinista” e “apoiante dos massacres”[2]. Ora, o efeito paralisante destas técnicas de puro terror conduz a que, para um número preocupantemente elevado de pessoas, sejam cada vez mais vistas como “normais” intoleráveis e anormais situações e condutas.

Assim, quando se descobre que diversos membros do actual governo estão, directa ou indirectamente, através de familiares seus, ligados a empresas e projectos sujeitos à tutela do governo (e às vezes do próprio ministério) de que fazem parte, tudo supostamente se “resolve” mediante uma interpretação habilidosa da lei, dizendo-se que a letra desta não proíbe frontalmente aquele tipo de incompatibilidade, de pouco ou nada importando que ela repugne à mais elementar Ética.

De passagem, confirmámos – e já o tínhamos visto aquando das greves dos enfermeiros… – que o Executivo do Dr. António Costa pede pareceres ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, mas, depois, numa luminosa demonstração do seu conceito de “legalidade democrática”, só homologa aqueles cujo conteúdo lhe agrada, metendo os outros na gaveta ou até solicitando um novo parecer devidamente reformulado! 

Desde o Tribunal de Braga até ao DIAP de Lisboa, faltam coisas essenciais nos Tribunais, desde instalações a pessoas, entre magistrados e funcionários, passando por meios financeiros e logísticos, como por exemplo papel, o que impede a realização de actos e diligências judiciais, de mandados a citações e notificações, mas a ministra da Justiça Catarina Sarmento e Castro (entretanto “desaparecida em combate”), com toda a desfaçatez, declara que não, não houve falta de papel, houve sim… “stocks em baixo” (sic), e nada mais se passa no conturbado mundo da Justiça… A não ser que o Bastonário da Ordem dos Advogados, invocando “ordens superiores” da Comissão Europeia, pretendeu proibir os advogados portugueses de aceitarem representar determinados constituintes unicamente por virtude da respectiva nacionalidade (russa). 

Foi agora noticiado que David Neeleman, o verdadeiro dono da TAP após a privatização ditada pela Tróica e o principal beneficiário desta, antes mesmo da aquisição do respectivo capital, terá acordado com a Airbus mudar a anterior encomenda da Companhia de 12 aeronaves A350 para 50 aviões A320 neo e A330 neo, a um preço superior em 15% ao da concorrência, passando a TAP a pagar qualquer coisa como 900.000€ por mês pelos leasings respectivos, e ainda que, em troca, a mesma Airbus terá pago a Neeleman um prémio no valor  de 70 milhões de euros, o qual lhe terá permitido ir à privatização sem gastar um cêntimo do seu bolso. A questão é que esta negociata já fora denunciada quer na altura, quer no momento da chamada “reprivatização” (em que os privados ficaram formalmente sem a maioria do capital, mas com toda a gestão da Companhia nas mãos), mas quer no tempo do governo Coelho/Portas, quer no do primeiro e segundo Executivos de Costa, tal denúncia foi completamente desvalorizada e abafada. 

E só volta a ser referida agora, quando convém ao governo – cujo primeiro-ministro e ministro Pedro Nuno Santos se tornaram, entretanto, ferozes partidários da privatização… – e à administração da TAP desviar as atenções de todos os dislates e incompetências que tal administração tem vindo a praticar, quando a operação de Natal está em sério risco de não se realizar por falta de tripulantes, designadamente pilotos (mas Madame Christine trata de os culpar pelo “crime” de  gozarem as licenças de parentalidade a que têm legal e constitucional direito). E, já agora e simultaneamente, quando se prepara para fazer no próximo dia 14, provavelmente em Carcavelos, na Nova SBE-Nova School Business and Economics (a Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, onde já quase só se fala inglês), uma enorme festarola anunciando os 111,3 milhões de lucros do 3º trimestre deste ano. Esquecendo, claro, que esses lucros só foram alcançados à custa do sobre-esforço e dos brutais cortes salariais da generalidade dos trabalhadores (que não obviamente dos privilegiados da corte, designadamente os dos BMW…). E a imprensa, designadamente a económica, que “olha para o lado” perante abusos, ilegalidades, incompetências e mentiras da ilustre CEO, logo se apressará decerto a divulgar o “sucesso” e a advertir que qualquer eventual greve dos saturados e estafados trabalhadores seria “um desastre”…

Sentado em cima da maioria absoluta que conseguiu obter nas últimas eleições, António Costa já nem disfarça um dos “tiques” típicos de todos os prepotentes: o de tratar de forma acintosa e arrogantemente chocarreira as questões a que pretende escapulir-se ou os antagonistas em confrontos em que lhe faltam os argumentos. Em qualquer sociedade civicamente exigente jamais passariam em branco graçolas de absoluto mau gosto como aquelas com que Costa fingiu desconhecer a questão dos 79 automóveis de luxo na TAP ou o modo como se dirigiu, no Parlamento, ao líder da Iniciativa Liberal. Mesmo que não se goste, como é o meu caso, do ideário deste partido político, não é de todo assim que se trava o debate político!

A enumeração dos exemplos deste tipo de situações poderia prosseguir, sendo todavia os acima expostos mais que suficientes para que se compreenda como tão útil foi aos grandes interesses que não cessam de se enriquecer à custa da exploração e da desgraça alheias, bem como aos políticos que, com esta ou aquela “camisola”, dedicadamente os servem, o preparar, exercitar e “olear” durante a pandemia – de que agora, note-se bem e não obstante os muitos elevados números de mortalidade, já ninguém fala!… – as políticas do “obedecer e calar!”, do “pão e circo para o povo” e do “quem não está por mim, está contra mim!”… Como sempre ao longo da História, se se conseguem abafar os gritos da Resistência, é certa a vitória da Opressão!

O pântano não vem, pois, aí. O pântano está aí! E antes que ele nos prenda e nos cubra a todos, urge que todos e cada um dos democratas deste país ousem falar e agir livremente e firmemente, ousem erguer-se contra todas as formas de censura, de injustiça, de ignomínia e de prepotência, se unam em tornos de princípios correctos, rejeitando todas as formas de oportunismo, de golpismo e de mentira, e ousem, enfim, combater e criar um Mundo Melhor! 

Porque tal é possível e tal é, e cada vez mais, necessário e urgente!

António Garcia Pereira              


[1] É o caso dos Acórdãos nº 477/2022, de 5/7 e nº 490/2022, de 14/7, e, antes desses e entre muitos outros os nºs 464, 465 e 466/2022 de 24/6.

[2] Veja-se, por exemplo, como foram destratados e atacados, entre muitos outros, os médicos Pedro Girão e António Ferreira, os professores Jorge Torgal e Raquel Varela, os majores-generais Raul Luís Cunha e Agostinho Costa, o Coronel Matos Gomes e jornalistas como Pedro Almeida Vieira e Bruno Carvalho, apenas por terem um pensamento divergente do dominante, o que é, do ponto de vista democrático, e independentemente de com eles se concordar ou discordar, profundamente deplorável.

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