Há 50 anos atrás, Portugal vivia sob uma ditadura feroz que se abatia sobre o movimento operário, sobre as organizações cívicas e políticas que combatiam o regime e, de uma forma particularmente violenta, em virtude do importante papel desempenhado nessa batalha pela juventude, também sobre o movimento estudantil: “gorilas”[1] e contínuos informadores da polícia política (PIDE[2]), nas Escolas, polícia de choque (chefiada pelos tristemente célebres capitães Maltês Soares, primeiro, e Pereira, depois) permanentemente estacionada na Cidade Universitária e a invadir brutalmente várias Faculdades, associações estudantis (como as do Técnico, Ciências, Direito, Instituto Industrial de Lisboa, Económicas, Medicina do Porto) proibidas e com instalações encerradas e largas dezenas de estudantes suspensos e com processos disciplinares (visando a sua punição, expulsão das Universidades e a sua consequente ida para a guerra colonial), muitos deles presos e torturados pela PIDE.
Foi neste violento e complexo estado de coisas que foi convocada para a tarde de 12 de Outubro de 1972, num anfiteatro de Económicas (hoje, ISEG), uma reunião de estudantes (um “meeting”, como se dizia na altura) contra a repressão. Ora, sucedeu que os ali presentes a dada altura descobriram, imobilizaram e vendaram um “bufo”, Vítor Manuel Lopes, que haviam surpreendido a espiar os cartazes existentes (e que denunciavam precisamente os processos disciplinares, as prisões e as torturas) e tudo aquilo que diziam e faziam os estudantes participantes na reunião.
Enquanto estes debatiam o que fazer com o dito indivíduo), eis que irrompem pelo anfiteatro adentro dois esbirros da PIDE (trazidos pelo secretário do Instituto, acompanhado por dois dirigentes associativos, que – pasme-se! – haviam concordado em que as autoridades da Escola telefonassem para a Pide para que esta ali viesse e dissesse se o bufo pertencia ou não àquela sinistra corporação) com as armas já prontas a disparar, o que provocou uma justa e indignada reacção por parte dos estudantes presentes.
Quando um desses esbirros já estava dominado e o outro quase, ouviram-se vozes gritando “Calma! Calma!”, o que criou um pequeno momento de hesitação. Aproveitando a oportunidade, António Gomes da Rocha, um dos esbirros (e que escapou impune, pois nunca, nem mesmo depois do 25 de Abril, foi julgado e condenado pelo crime que cometeu) sacou da pistola (já pronta a disparar) e, apontando ao peito e a metro e meio de distância, assassinou, com dois tiros, o estudante de Direito José António Ribeiro dos Santos. E, diga-se ainda, que só não assassinou mais ninguém porque outro estudante de Direito, José Lamego, corajosamente se atirou, entretanto, ao assassino, acabando, contudo, baleado numa coxa, tendo sido levado para o hospital e depois entregue à Pide, para ser torturado, durante três meses, em Caxias.
José António Ribeiro Santos tombou varado pelas balas assassinas do regime fascista porque era um firme e corajoso lutador anti-fascista, sempre na primeira linha de combate (também na Faculdade de Direito, onde já fora e estava a ser alvo de processos disciplinares desencadeados pelo Conselho Escolar fascista, presidido pelo famigerado Director Professor Pedro Soares Martinez), e porque o governo de Marcelo Caetano, tal como antes o de Salazar, não olhava a meios para procurar reprimir todos os que lutassem pela Liberdade, pela Democracia e contra a guerra colonial.
Ribeiro Santos encabeçava então uma tendência do movimento estudantil, cuja principal palavra de ordem e denominação ficaram célebres, “Ousar lutar, ousar vencer!”, e que cortava com uma até aí predominante visão reformista e estritamente corporativa do movimento estudantil defendendo, ao invés, a integração da luta dos estudantes na luta mais geral do Povo português contra a guerra colonial e pelo derrube do regime fascista.
A verdade é que, não obstante a sua brutalidade, o vil assassinato de Ribeiro Santos foi o princípio do fim do regime fascista, que pagou muito caro por ele e não mais recuperou do profundo golpe que esse mesmo crime e o movimento de repúdio e de revolta que ele suscitou lhe causaram.
Desde logo, e não obstante todas as ameaças governamentais e todas as brutalidades de pides, legionários e polícias de choque, a verdade é que milhares de pessoas enfrentaram corajosamente as forças da repressão na sexta-feira seguinte por toda a cidade de Lisboa. E no Sábado, aquando do funeral, cercado e violentamente atacado, e no qual a polícia de choque arrancou à matracada o caixão de Ribeiro Santos das mãos dos seus camaradas, amigos e colegas, o meteu à pressa num carro arranjado pela Pide e o levou à desfilada para o cemitério da Ajuda, entretanto militarmente cercado e ocupado, e onde foi proibida a entrada e se sucederam violentas cargas policiais.
Seguiram-se muitos e sucessivos protestos e lutas, não apenas estudantis, mas também operários e populares. Sucederam-se as tomadas de posição e as manifestações contra a guerra colonial e as greves, apesar de legalmente proibidas e violentamente reprimidas[3].
E nunca, nunca mais, e até hoje, meio século depois, o Povo português esqueceu a memória de Ribeiro Santos o seu heróico exemplo!
A Sessão Evocativa do assassinato de José António Ribeiro Santos, que o Instituto Superior de Economia e Gestão – ISEG leva a efeito na quarta-feira, 12 de Outubro de 2022, às 15h30, no Átrio das Francesinhas, e na qual conclamo estudantes, professores e funcionários da Escola, e cidadãos em geral a participarem, assinala não só a violência, a cobardia e a brutalidade do crime, mas também afirma e celebra a ideia essencial de que, sejam quais forem as dificuldades, a injustiça, a prepotência e a repressão brutal não são afinal invencíveis e vale sempre a pena lutar por aquilo que é justo!
HONRA A RIBEIRO SANTOS!
António Garcia Pereira
[1] Nome dado a ex-combatentes das tropas especiais que eram contratados pelo Ministério da Educação de Veiga Simão para vigiar, perseguir e espancar estudantes.
[2] Mais tarde rebaptizada por Marcelo Caetano em “DGS-Direcção-Geral de Segurança.
[3] Por exemplo, imediatamente antes do 25 de Abril, o sector da electrónica, essencialmente com mão-de-obra feminina, muito jovem, hiper-explorada e oprimida, estava a ser sacudido, perante o desespero do governo fascista, por uma vaga de greves.
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