Preambulando
No dia 24 de Abril de 1974 eu era ingénua e desconhecia.
“Fascismo nunca mais” não é uma hastag, nem um slogan vazio. Porque vivemos com o espectro da bota do fascismo que nos esmaga o pescoço. E no entanto há quem diga “nesse tempo de Salazar é que era bom”. Eu digo do alto da minha humildade, o que sei sobre a História recente de Portugal.
O 25 de Abril de 1974 não é só uma canção nem só uma flor.
O contexto e o que eu desconhecia era imenso.
Desconhecia Grândola e as canções censuradas pelo regime. Desconhecia Catarina Eufémia assassinada pela polícia do regime de Salazar. Desconhecia o facto de mulheres não poderem votar, nem divorciar-se, nem viajar sem autorização dos maridos, Não tinham passaporte ou sequer estudavam. A educação nas escolas apenas se destinava a pouquíssimos privilegiados. As mulheres que estudavam podiam ser Professoras. As telefonistas? não se podiam casar, porque falavam com muitos homens ao telefone…
A única profissão em alta no feminino era claro está, a prostituição. A prostituição e a pedofilia praticavam-se sem vergonha nem moral, mas às escondidas. A violência doméstica era normal porque a mulher era tida e vista como serviçal do marido. As criadas de servir eram abusadas sem pudor pelos patrões. Não era nem crime nem havia castigo.
Desconhecia o porquê da tendência feminina da moda ser o lenço preto e o bigode. Tudo no ser mulher tinha a mesma razão: pudor, culpa do corpo, esconder ser mulher. Passar invisível, ser anulada, recatada e do lar. Eram os comandos da política e da Igreja.
Desconhecia haver uma elevada taxa de mortalidade infantil e materna. Desconhecia não haver Professores nem médicos para todos. Nem Planeamento familiar. Deixava-se ao critério da Nossa Senhora de Fátima a encomenda dos filhos que ela quisesse. Deixava-se ao cuidado da Senhora de Fátima que esta viesse a fazer milagres e matasse a fome aos Portugueses.
Desconhecia que a Igreja mantinha submissa quem pecasse (e/ou) toda uma população, controlada e medrosa do inferno. E o pecado podia ser tudo.
Desconhecia o trabalho infantil. Desconhecia que ao matabicho a maioria comia figos secos e aguardente, sopas de cavalo cansado (o álcool dava torpor suficiente para esquecer as contracções do estômago com fome). Ao almoço era uma refeição com uma açorda temperada a um raminho de hortelã e ao jantar um pedaço de toucinho, uma bucha de pão e uma malga de sopa. Desconhecia que a maioria dos Portugueses andava descalço, vivia em casas sem casas de banho e não tinha roupas para mudar.
Portugal era um romance de Dickens, o cenário era um Estado Novo autoritário e amedrontado, num canto encostada às cordas do Atlântico.
Desconhecia que o meu pai tinha seguido numa viagem ultramarina para a Guiné-Bissau, enfrentando um guerra contra irmãos no chão onde nasceu um homem de nome Amílcar Cabral. Este vir-se-ia a tornar a bomba de neutrões do regime imperial e colonialista que durava há quinhentos anos.
Desconhecia que o meu avô Português tinha medo de perder o filho na guerra colonial, e me estivesse a criar – uma neta preta – preparando-me para um futuro sombrio, uma futura órfã, num país racista.
Desconhecia todas as dificuldades que os homens e mulheres da minha vida enfrentavam. Desconhecia que além-mar morriam muitos filhos de um lado e de outro, todos irmãos, filhos de um país que dizia que as terras eram sua pertença. Desconhecia as razões do pai querer matar os filhos e não lhes dar a Independência, à qual tinham direito natural.
Desconhecia que o Império estava por um fio.
Desconhecia as prisões arbitrárias do regime por alguém ser comunista, contra o regime fascista e contra o colonialismo.
Desconhecia as razões da submissão e do viver de cabeça baixa, olhando por cima do ombro, desconfiados. Desconhecia as razões do silêncio, do medo, da existência de uma rede de centenas de informantes, cidadãos comuns – vulgo bufos. Podia ser o vizinho do lado, um irmão, um compadre.
Quem fosse opositor do regime tinha como destino o Tarrafal, Caxias, Aljube ou outras prisões – lugares de torturas abjectas e morte, como bem as conheceram os comunistas. Homens e mulheres.
Desconhecia a existência da censura, do controlo, da proibição de canções e de livros. Desconhecia os ordenados miseráveis, a fome, a pobreza extrema, apesar de não haver dívidas e os cofres estarem cheios. Os soldados iam para a guerra ganhando uma miséria. Eram carne barata para os canhões que rebentavam com irmãos.
Dentro da classe militar havia grandes disparidades nos ordenados criando tensões profundas. Seria este o sinal de partida do 25 de Abril. Os militares, os únicos que tinham o poder das armas nas mãos para concretizar uma revolta.
Na Guiné-Bissau José Carlos Schwarz tinha uma canção “Si bu sta diante na luta” e Zeca Afonso tinha Grândola, o incentivo para a libertação.
Desconhecia a existência de uma elite que viajava, estudava, detinha as grandes empresas ligadas ao regime, em Portugal – e nas então colónias do império – que detinham o monopólio da exploração das terras (como também o caso do Alentejo). Naturalmente que estes não queriam que se desmoronasse o império tão arduamente construído sob as costas dos povos oprimidos lá longe. E do povo Português.
Desconhecia o sub-desenvolvimento nas mentes e na qualidade de vida que era inexistente. Desconhecia que o trabalho era sobretudo manual, que havia pouca indústria e menos ainda serviços públicos.
Desconhecia que a maioria das famílias partilhavam a mesma cama para dormir.
Desconhecia que não havia eleições livres. Desconhecia que a maioria da população – num país de cofres cheios – era votada ao analfabetismo. Desconhecia que havia poucas cidades e as estradas eram quase inexistentes e as poucas existentes, péssimas. Desconhecia a falta de transportes, de saneamento básico e a água era de péssima qualidade.
O país era essencialmente rural, pincelado a pequenas aldeias e profundamente atrasado.
Desconhecia que a Liberdade era inexistente, apenas uma miragem e uma utopia, pensada por poucos, loucos, poetas e cantores.
Este era o país que eu desconhecia, onde eu vivia no dia 24 de Abril de 1974.
Fui uma privilegiada. A mim tocou-me conhecer muito bem o racismo. Na pele. Mistura de preta com branco.
Era das poucas pretas a viver no meu país de nacionalidade, aquele que dominou a minha terra original, também terra do Império.
Todos os que tinham cor chocolate escuro ou de leite eram invariavelmente sacos de boxe dos ignorantes. O país era racista contra os poucos pretos que viviam por cá.
O medo daqueles que todos se tinham habituado a ouvir dizer serem os “inferiores”. Foral aliás ensinados, doutrinados, manipulados a ver a cor preta por inferior.
E sim o racismo também acontecia nas ex-colónias. Eu desconhecia. Fazia parte da educação, da doutrinação, da manipulação. O branco era superior. Podia estudar e ter privilégios. O preto…esse inferior…era usado para servir.
“Vai para a tua terra”, “preta da Guiné, lava a cara com xulé”. Eram os hashtags sociais. Desconhecia as razões.
Ainda por cima, quando finalmente o meu país fez a descolonização do meu país, no pós 25 de Abril de 1974, quando a minha terra e de Amílcar Cabral se declarou unilateralmente independente em Setembro de 1973, fomos olhados por cima do ombro como se algum de nós – os inferiores – viéssemos roubar a miséria que aqui estava entranhada.
Portugal sim é um país pobre, enquanto o meu outro país é rico. Era de lá que vinham as riquezas que enchiam os cofres de Salazar.
No dia 25 de Abril, acordei e fui para a escola como habitualmente. A escola estava fechada. Pouco depois apareceu o meu avô. Em vez de seguirmos para casa, levou-me para a estrada, juntámo-nos ao resto do povo como nós, apesar da ordem contrária do Movimento das Forças Armadas.
Começamos o dia em modo desobedecer. Fomos ver a Dona Liberdade desfilar.
Levantou-se o véu. Havia um golpe de Estado. E o véu levantava-se sobre todas as coisas que eu desconhecia.
Com os olhos brilhantes e o coração desenfreado passarem os tanques em direcção a Queluz. Seria um alívio na tensão da respiração do regime moribundo? Um capitão de nome Salgueiro Maia enfrentou os tanques e a bota opressora do regime.
No dia 24 de Abril eu era ingénua e só sabia o quanto desconhecia.
Colónias e Regime
No dia 24 de Abril o regime de Portugal senhorio nos territórios ultramarinos por cinco séculos, tinha o seu fim. Foi por causa da manutenção irreal deste Império, de uma guerra colonial sem sentido que caía o regime. Pelas mãos dos combatentes africanos da Guiné-Bissau, Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique e os capitão do Movimento das Forças Armadas Português.
O Império colonial cinco séculos antes (no início do século XV) apossou-se, impôs-se e cobrou renda através de um regime duro e violento. Já no século XX, em 1963 desencadeia uma guerra enviando os seus filhos para combater os irmãos. Dezenas de milhar morreram na guerra civil. Por cá outros milhares morriam de fome e pobreza.
Uns queriam libertar-se do pai tirano. Outros não sabiam o que andavam por lá a fazer. Diziam-lhes que combatiam terroristas. Um deles chamava-se Amílcar Cabral.
Mães e pais ficaram sem os filhos. Portugal, foi o último a deixar cair o seu vergonhoso império.
A pergunta que não deveria calar os Portugueses é simples. Como foi possível Portugal ser tão rico por cinco séculos e ser tão miserável na sede do Império? Onde foi parar essa riqueza? Quem a tem? Para além dos cofre cheios de ouro de Salazar?
O medo era o prato principal servido diariamente em todas as mesas Portuguesas. Ninguém perguntava, ninguém queria respostas? Serão os mesmos e os seus descendentes que hoje não querem celebrar o 25 de Abril de 1974 num regresso tenebroso ao passado?
Eu desconhecia os factos à data da Revolução dos cravos.
Epilogando,
No dia 25 de Abril de 74, quando me dirigia à escola, um cabo de nome Alves da Costa dentro do seu blindado recebeu ordem dos militares pró-regime para atirar sobre Salgueiro Maia, o insurrecto que na Rua do Arsenal comandava as tropas rebeldes. O cabo Alves da Costa desobedeceu juntando-se aos insurrectos.
O dia esperado por tantos, em tantos territórios, tinha chegado.
No ano de Mil Novecentos e Setenta e Quatro, no dia Vinte e Cinco de Abril, foi o dia em que os filhos do pai biológico lhe desobedeceram e retiraram o poder de tiranizar os filhos. Finalmente passaram para o lado dos restantes irmãos ajudando-os a libertarem-se.
Foi do dia 25 de Abril, na rua, junto do povo Português que eu comecei a entender em que país vivia. Estava a ganhar a Liberdade e a consciência enquanto ia perdendo a ingenuidade.
Este foi um sabor indelével. Absorvia, observava e vice-versa, sem entender.
E perguntava “avôzinho, agora também vão deixar de ser racistas?”
Foi nesse dia que comecei a ter percepção sobre a razão de tanto racismo contra mim. Sem o entender mas a ver o quão incrustado no ADN Português o regime de Salazar tinha conseguido marcar (indelevelmente?) um povo.
Portugal sub-desenvolvido era um Estado que matava os opositores, mantendo na pobreza a maioria da sua população medulamente católica por interesses estratégicos de controlo.
A vinda de mais de um milhão de refugiados de guerra das ex-colónias do Império, a maioria nascida por terras além-mar, que nunca pensaram de lá sair, conta a história de como estes foram descriminados cá, também esta a sua terra, por todas as razões que eu começava a ter consciência – o Portugal que havia até Abril de 74.
Um país profundamente anti-feminista, colonialista, racista, capitalista e fascista. As bactérias “istas” que destroem vidas humanas. E ainda dizem que era bom?
Foi nesse dia que eu comecei a entender que não queria regressar nunca mais ao país do dia 24 de Abril de 74, que até então desconhecia.
Estejamos atentos e tenhamos cuidado, o perigo mais que espreita à porta, adentra-se na casa. E isso já não desconheço.
Continua a ser pertinente e actual não parar de falar de sonhos e utopias antes de sermos totalmente mastigados e engolidos por aqueles que não querem celebrar a data que marca o fim do Império e com ele o fim do regime totalitário do Estado Novo escancarando as janelas e as portas à Liberdade e a uma República laica.
A História está ligada. As Histórias dos países de expressão Portuguesa e o 25 de Abril estão ligadas. Sem as revoluções africanas o 25 de Abril de 1974 não teria acontecido. Nas palavras de Amílcar Cabral “ os povos oprimidos ajudaram a libertar o opressor”.
“Fascismo nunca mais”! 25 de Abril, sempre!
Anabela Ferreira
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