Treze (13) mulheres assassinadas este ano. Crime: violência doméstica. Os seus companheiros mataram-nas. Porquê? Ou eram deles ou de mais ninguém. Ou obedeciam às suas leis ou morriam.
Eram os seus objectos não transaccionáveis a não ser para uso a belo prazer dos próprios.
Más leis, fracas leis, leis injustas para com as agredidas e ligeiras para o agressor. Magistrados – homens e mulheres – que pensam como agressores. Polícias mal preparadas, polícias sem meios (legislação e capacidade de respostas assertivas aos factos).
Falta de uso de armas massivas de educação para a não violência, numa sociedade a nível educacional, moral, emocional e cultural pouco preparada, muito fragilizada, condicionada e tão vulnerável quanto as vítimas.
Comparo o país que hoje somos, como vejo uma vítima/sobrevivente de violência. Maltratados, abusados, enxovalhados, humilhados e envergonhados, deitados ao chão tantas vezes que precisamos de uma pedra de David para enfrentar semelhante Golias. Como o fascismo de Salazar enfrentado no passado.
Fios vermelhos,
Quando ele me bateu caí desamparada no chão a sangrar. Nem sei de onde vinha o sangue. Deixei-me ficar muito quieta de cara virada para o chão. Aterrorizada. Sentia-me coberta por uma nuvem de frio. Tremia muito. O melhor era não o fazer enervar mais. Fica quieta disse para comigo. Pensa noutra coisa. Inspira e expira em silêncio.Bem devagarinho.
Sentia frio e suor no estômago, vindos do medo. Comecei a olhar o branco dos azulejos, agora cobertos de fios vermelhos que deslizavam. Estava ali um pedaço de arte a ser feito pensei em desespero. Uma pedra branca com fios vermelhos.
Fixei aquela imagem na memória. Nunca mais a esqueci.
Ao fundo ouvi a porta bater. Ia certamente beber com os amigos. Voltaria e encontrar-me-ia no chão. A olhar a pedra branca com fios vermelhos.
Era a hora certa…
…Serve-me a imagem quando penso nos abusos dele. E quando penso nos momentos em que se ajoelhava a pedir para voltarmos. Dizia que só me conseguia amar a mim. A mim? Claro que sim. Em mim tinha uma aliada para com os seus abusos. Sem auto-estima, isolada, aterrorizada, sozinha, descrente em ajudas e envergonhada perante todos.
Eu sim amei-o ao ponto de não conseguir ver o que estava a acontecer e perdoar tantas quantas as contas de um rosário.
Até aquele último dia que me bateu, depois de dias seguidos a bater-me e a amar-me.
Amar assim? O amor não faz sangrar.
Quando quero explicar a mim mesma o que não é amor, fecho os olhos.
Nesse instante vejo uma pedra branca com fios vermelhos.
Dedicado a todas as mulheres que um dia passaram por este horror. Sim, sei que há também homens, não ando distraída. Porém a conta corrente das vítimas mulheres tem um saldo não apenas mais antigo, mais enraizado, como como mais elevado.
Escrevi este pequeno conto, baseado numa história real que me foi contada pela sua sobrevivente, quando andei a recolher histórias para as contar num projecto de sobreviventes que se transformaram em mulheres novas e livres.
Anabela Ferreira
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