A cidadania e as prioridades de Montenegro

O último discurso de Luís Montenegro apresenta várias particularidades, as quais, pela sua relevância, não podem e não devem passar despercebidas. Em primeiro lugar, é importante considerar o local do discurso e o contexto em o orador se fez ouvir. Com efeito, o Primeiro-Ministro decidiu, publicamente, e assumindo o papel de governante, apresentar sete prioridades para o futuro da acção governativa. Esta acção não ocorreu à saída de um Conselho de Ministros, ou em outro evento de natureza governamental, mas sim durante a sessão de encerramento do 42.º Congresso do PSD, partido ao qual pertence.

Além disso, a declaração das prioridades de acção do Executivo é especialmente elucidativa, quer pelas acções que mencionou realizar, como, para não dizer sobretudo, pelas omissões totais ou parciais, isto é, aquilo de que não falou.

Justiça: Assim, e desde logo, não obstante a indiscutivelmente grave situação da Justiça, que clama por medidas de fundo e urgentes em vários aspectos – desde a redução das astronómicas custas até ao fim da completa paralisia dos Tribunais Administrativos e Fiscais, passando por toda a Justiça Penal e o espectáculo circense em que foi transformada – nem uma palavra se ouviu sobre este tema. Afinal, está tudo bem na Justiça ou Montenegro também tem receio de lhe tocar?

Pobreza: Quanto à situação de pobreza que se vive actualmente no nosso país, Montenegro insistiu na lógica “assistencialista” ou caritativa das políticas sociais, fazendo referência à criação de um chamado “Programa de Emergência Social”, assente não em políticas de aumento de rendimentos (salários e pensões), mas sim num indefinido “vale alimentar mensal” para as famílias mais pobres. Além disso, manteve o mais completo silêncio acerca das reais causas dessa dramática situação (com 1/5 da população portuguesa situado abaixo desse limiar), mesmo com todas as instituições de solidariedade social, do Banco Alimentar contra a Fome à Cáritas, a alertarem para o agravamento da situação, bem como para o envelhecimento crescente dessa população e para um número cada vez maior de jovens que se veem obrigados a acumular trabalhos e, mais do que isso, a querer sair do país em busca de oportunidades que aqui não encontram.

Aproveitamento da localização: Por outro lado, Portugal tem uma magnífica localização geoestratégica na orla da chamada “centralidade atlântica”, e dispõe de uma Zona Económica Exclusiva extremamente rica em recursos (animais, vegetais e minerais), cuja área é superior à soma dos territórios terrestres de todos os países da União Europeia. Todavia, e por força da integração europeia e da lógica da divisão de recursos dentro da UE, a verdade é que não dispomos de uma frota de pesca (sendo nós o segundo maior consumidor de peixe per capita do mundo!) nem de uma marinha mercante digna desse nome. E apesar de termos uma vastíssima área marítima e aérea de controlo e fiscalização e de busca e salvamento (aliás, cobiçada desde há muito por Espanha), a nossa Marinha de Guerra é composta por embarcações velhíssimas, ultrapassadas e com avarias permanentes. Ora, também rigorosamente nada foi mencionado como “prioridades para o futuro” nestes campos, que são absolutamente essenciais para a afirmação de Portugal como um país progressivo e avançado.

Transporte ferroviário – O abandono da ferrovia, herdeiro directo da política errada de Cavaco, que privilegiou o transporte rodoviário, o betão e o alcatrão das autoestradas – muitas delas duplicadas e até triplicadas – e os negócios das respectivas Parcerias Público-Privadas, é, por si só, um crime que não é apenas económico (pois o custo médio do quilómetro de transporte por camião é 7 vezes superior ao do transporte por comboio), mas também ambiental (devido à significativa pegada ecológica deixada) e até social (pela muito maior sinistralidade rodoviária). Contudo, é um crime ainda maior não termos um traçado ferroviário de alto desempenho em forma de “F”, com um eixo transversal que ligue os principais pontos entre si (de Sines a Matosinhos) e dois eixos horizontais: um, mais a sul, ligando Sines à Andaluzia, e sobretudo outro, mais a norte, ligando Aveiro a Viseu e Vilar Formoso, seguindo depois para a Europa através de Salamanca e Burgos, conferindo assim uma acrescida produtividade a toda à indústria do Centro e Norte do país. Mas a verdade é que nem uma única referência se ouviu do Primeiro-Ministro sobre qualquer destes relevantíssimos pontos, apesar da sua enorme e inegável relevância para o desenvolvimento do nosso país.

Trabalho: Um mundo onde cerca de 1/3 da economia é “informal” ou “não registada” (ou seja, totalmente à margem da lei), onde proliferam falsos recibos verdes (que, em média, ganham 541€ por mês e duplicaram nos últimos anos, ultrapassando já o meio milhão), onde os horários são longos e os salários são extremamente baixos (representando cerca de 59% da média da EU-27), onde abundam enormes abusos (com jornadas de trabalho de 10, 12 horas ou mais por dia), onde dois milhões de trabalhadores são vítimas de práticas graves de assédio moral, frequentemente sem denúncia por receio de retaliações (segundo o recentíssimo inquérito “Ethics at Work 2024” do Institute of Business Ethics, realizado em Portugal em parceria com a Católica Porto Business School), e onde se agravaram as áreas de híper-exploração e de verdadeira escravatura (em particular de imigrantes, especialmente na agricultura intensiva, na apanha de marisco, na restauração e na construção civil); nada disto mereceu qualquer referência, menos “prioritária”, por parte do Primeiro-Ministro!

Entretanto, a Ministra do Trabalho deixa escapar a intenção de aprovar medidas que incrementam o abuso e a exploração, designadamente a “flexibilidade”, que se traduz na facilitação do aumento dos tempos de trabalho (por meio dos “bancos de horas” e das “adaptabilidades”), bem como da substituição de trabalhadores permanentes por precários através de despedimentos colectivos, voltando a permitir operações de “outsourcing” na sequência desses despedimentos), ao mesmo tempo que pretende dificultar o reconhecimento do contrato de trabalho para os trabalhadores das plataformas (como condutores e estafetas), alterando a nova presunção de contrato de trabalho introduzida no Código do Trabalho em 2023 (art.º 12º-A).

No que que diz respeito aos sectores a que o Chefe do Executivo fez expressa referência, é muito interessante verificar as suas prioridades.

Saúde: A preocupação não foi de todo com o essencial, ou seja, no reapetrechamento do Serviço Nacional de Saúde em termos de meios técnicos, materiais e humanos, de modo a combater e evitar, por exemplo, o encerramento de urgências, as recusas de atendimento, as dezenas de nascimentos de bebés em ambulâncias, a manutenção das enormes listas de espera para exames, consultas e cirurgias, e o gigantesco número de pessoas sem médico de família (1.675.663 em Agosto de 2024), além da degradação salarial e das carreiras, bem como do progressivo esgotamento e desânimo dos seus trabalhadores. Em vez disso, o foco foi privilegiar a “complementaridade no acesso aos cuidados de saúde”, ou seja, abrir novas oportunidades para os grupos privados envolvidos no “negócio” da Saúde.

Educação: Em particular no que diz respeito ao ensino pré-escolar, Montenegro e o seu Governo também não se preocupam em reforçar a capacidade de resposta dos serviços e instituições públicas. Em vez disso, priorizam “aumentar a contratação pública por sala de aula”, apontando para o aumento dos chamados “contratos de associação”, ou seja, para o crescimento da área de negócios dos colégios, creches e infantários privados, que são pagos, e generosamente, com dinheiros públicos!…

Disciplina de Cidadania: A “cereja no topo do bolo” foi mesmo o anúncio – significativamente saudado pelos participantes no 42.º Congresso do PSD com uma grande ovação! – da alteração do conteúdo da disciplina de Cidadania, norteada pela ideia central de que ela será “libertada de amarras e projectos ideológicos e de facção” (sic). Porém, tão aplaudida medida não constitui propriamente uma novidade. Por exemplo, a ultra-reaccionária pastora evangélica Damares Alves, Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do Governo de Bolsonaro, já proclamara, em Janeiro de 2019, que “meninos vestem de azul e meninas vestem de rosa”, numa declaração apresentada pela própria como “uma metáfora contra a ideologia de género” e um aviso de que iria “acabar com a doutrinação ideológica” na Educação. A partir daqui decorreram “naturalmente” o violento ataque ao ensino público e aos seus professores, a glorificação do ensino particular, incluindo – amarga ironia… – o mais ideologicamente ou religiosamente marcado, e até o elogio da chamada “educação domiciliar”.

Em primeiro lugar, deverá salientar-se que, regra geral, os alegados combatentes contra aquilo que apelidam de “ideologia de género” são, na verdade, eles próprios, os primeiros e mais aguerridos defensores de uma determinada ideologia de género, entendida como um conjunto de ideias e de crenças, frequentemente de natureza ou inspiração religiosa, acerca dos homens e das mulheres e dos seus alegadamente inatos papéis, apresentando a maternidade como “natural” para as mulheres, e a guarda, o sustento económico e a superioridade daí decorrentes “naturais” para os homens. Assim, defendem que, sendo esses papéis sociais “naturais”, jamais podem ser questionados, tal como não podem ser admitidas ou consideradas quaisquer outras perspectivas sobre o género que não sejam as politicamente e socialmente dominantes.

Assim, o discurso político que sustenta este tipo de concepções aponta sistematicamente os críticos e os divergentes da ideologia dominante como portadores da “ideologia de género” e considera-os como inimigos que pretendem destruir a instituição da Família e a inocência das crianças, assente na suposta, e nunca cientificamente demonstrada, sexualização precoce das crianças. Por isso, estes críticos merecem e devem ser ferozmente combatidos. No Brasil, este tipo de concepções – desenvolvidas sobretudo a partir da votação do Plano Nacional de Educação em 2013 – constituíram um factor muito relevante para o crescimento e fortalecimento da extrema-direita e das suas posições.

Em Portugal, é preciso dizer com total clareza que não havia, nem há, qualquer “problema” essencial com a disciplina de Cidadania, com os professores, com os alunos ou com as escolas, como, aliás, declarou recentemente o Presidente da Associação de Directores das Escolas. Poderão sempre verificar-se alguns erros e até disfuncionalidades, mas estes, sendo uma minoria, não se verificaram nesta disciplina mais do que noutras, como na Matemática, no Português e, sobretudo, na História. No entanto, e sobretudo relativamente a esta, ninguém se lembrou de apresentar como prioridade governativa o “combate à ideologia de género” ou o “soltar as amarras de projectos ideológicos”…

Ao invés, é sobretudo nessa disciplina da Cidadania que se devem dar a conhecer às crianças, e desde cedo, os principais direitos e deveres dos cidadãos, fomentando o seu espírito crítico e a sua capacidade de analisar e enfrentar as situações com que se deparam. É fundamental levá-las a compreender que devem ser definitivamente enterradas ideias e concepções ultra-retrógradas, como as que se aprendiam durante o Fascismo, como as de que “manda quem pode, obedece quem deve”, “é Deus que nos ensina que devemos obedecer aos nossos superiores”, e a ideia de que “a minha política é o trabalho”, além de barbaridades machistas, como “o lugar da mulher é no lar, o trabalho fora de casa masculiniza” (Revista Querida, 1955) ou “a mulher deve fazer o marido descansar nas horas vagas, nada de incomodá-lo com serviços domésticos” (Jornal das Moças, 1959). 

A prioridade deve ser a criação, nos mais novos, de um elevado espírito cívico, sem qualquer espécie de contemplação em relação à injustiça, ao arbítrio e ao abuso, e sem nenhuma complacência com comportamentos discriminatórios, nomeadamente em função do sexo ou da cor da pele, assim como em relação à violência doméstica e aos maus-tratos contra idosos ou crianças. É assim que se formam, não dóceis “ovelhas”, sempre dispostas a aceitar tudo o que o seu “pastor” lhes imponha, por mais errado ou brutal que seja, mas cidadãos activos e conscientes, zelosos da sua liberdade de opinião e da sua capacidade e responsabilidade de decisão. Esses cidadãos serão, é certo, bem mais difíceis de governar e controlar, mas são, afinal, eles que fazem com que o mundo (e o país) pule e avance…

Ora, quando Luís Montenegro, envergando as vestes de Primeiro-Ministro, decide ir ao Congresso do PSD anunciar que uma das prioridades do seu Governo é “libertar” a disciplina de Cidadania da “ideologia do género”, não está apenas a abrir o caminho à direita mais ultramontana e à extrema direita. Está, sobretudo, a evidenciar a sua intenção de granjear o apoio, em particular o apoio eleitoral, desse espectro político, numa claríssima demonstração do seu verdadeiro programa político.

António Garcia Pereira

Um comentário a “A cidadania e as prioridades de Montenegro”

  1. Maria Idalina diz:

    Excelente comentário, como sempre.

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