Agora que as eleições europeias terminaram e que não há nenhum espectáculo mediático de algum “mega-processo” que encha os telejornais e as primeiras páginas dos jornais, importa retomar o debate sério, aprofundado, firme e desprovido de preconceitos acerca da Justiça.
Insisto, por isso, em algumas questões e posições que venho defendendo há mais de 25 anos, como um contributo para esse debate que é cada vez mais necessário.
1ª – Por que é que os cidadãos devem querer e poder discutir a Justiça?
Antes de mais, porque a Justiça é um direito fundamental[1] (e não um “serviço”) dos cidadãos (que não são meros usuários desse “serviço”) cuja garantia de efectivação constitui uma das traves-mestras do Estado de Direito Democrático[2]. É preciso, assim, dizer com toda a clareza que este não existe verdadeiramente sem uma Justiça justa, que garanta de forma efectiva a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Ora, o 25 de Abril nunca entrou a sério na Justiça e foi assim que não apenas juízes e procuradores dos sinistros Tribunais Plenários puderam, sem nunca prestar contas dos crimes que cometeram, seguir tranquilamente as suas carreiras, como a Justiça manteve praticamente intactos os tiques de autoritarismo próprios do regime fascista, desde logo no contacto com os cidadãos, vistos – até na própria arquitectura dos Tribunais! – como súbditos, de chapéu na mão e a terem de olhar de baixo para cima quando se dirigem àqueles.
2ª – Mas porque é que devemos discutir primordialmente a Justiça Penal?
É certo que existem outros problemas, e bem graves, relacionados com a Justiça, designadamente o valor escandalosamente elevado das custas judiciais, um sistema de dispensa das mesmas que praticamente só se aplica aos indigentes, o “poço sem fundo” que são hoje os Tribunais Administrativos e Fiscais com pendências (só na 1ª instância) de mais de uma década, transformados assim em instrumentos privilegiados quer da inutilização prática dos direitos dos administrados e contribuintes, quer da cultura de impunidade e arrogância das entidades administrativas (como o próprio Estado, o Fisco, a Segurança Social e a Caixa Geral de Aposentações), bem cientes, infelizmente, de que a efectiva punição das suas ilegalidades e prepotências nunca chegará em tempo útil.
Todavia, é na Justiça Penal que se vêm cometendo os maiores abusos e até os maiores dislates em matéria de violação de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e de exercício de poderes incontrolados e até encobertos, sem legitimação democrática alguma.
3ª – Porque é que, a propósito da Justiça Penal, se deve discutir sobretudo o Ministério Público?
Porque o Ministério Público é hoje um verdadeiro “Estado dentro do Estado”, sem qualquer controlo democrático dos seus poderes, e porque é ao abrigo dele, do edifício jurídico que conseguiu que fosse sendo construído e do “caldo de cultura” nele hoje dominante – em particular nas suas principais estruturas, como a Procuradoria-Geral da República, o Conselho Superior do Ministério Público e o corpo de elite DCIAP – que se cometem os maiores abusos, tais como a liquidação sistemática do princípio da presunção de inocência, as sempre cirúrgicas e impunes violações do segredo de Justiça, os “homicídios de carácter” de cidadãos (sempre ilibados largo tempo depois), numa postura, tão arrogante quanto desresponsabilizadora, de quem não quer nem tem que prestar contas a ninguém daquilo que faz ou deixa de fazer.
4ª – Qual é, na verdade, a situação que temos hoje no Processo Penal?
Fundamentalmente existe uma fase inicial de inquérito, em que é o Ministério Público que manda em absoluto e faz o que quer (e apenas se, quando e como bem entende), em que os respectivos prazos processuais do Ministério Público não são para cumprir e em que, à custa da colaboração da imprensa amiga, se condenam pessoas antecipadamente e sem salvação possível na praça pública. Tudo isto ocorre sem qualquer controlo jurisdicional efectivo – aliás, à sombra de estarrecedoras teorias como a de que não competiria ao juiz de instrução conhecer e declarar a (i)legalidade de actos praticados pelo Ministério Público durante o inquérito – numa situação em que, sob a capa da sua autonomia, e como se tem lamentavelmente visto e revisto, ninguém é afinal responsável por coisa nenhuma nem presta contas a quem quer que seja.
Este estado de coisas conduz em linha recta a coisas inauditas como: o uso e abuso de medidas e operações de grande impacto mediático (inclusive com certos órgãos da Comunicação Social a, estranhamente, tomarem conhecimento antecipado de diligências em pseudo-segredo de Justiça e até a filmarem-nas em directo, como ocorreu, por exemplo, na detenção de José Sócrates e nas buscas da “Operação Lex”), mas sem justificação processual bastante e, logo, com resultados práticos mais que insuficientes ou mesmo inexistentes; a sistemática confusão das convicções e valorações do Ministério Público com factos e até à tentativa de fundamentação da indiciação de arguidos com base em… notícias da Imprensa!!??; e, enfim, o abusivo uso dos “Processos Administrativos” (prévias averiguações para indagar da justificação da instauração de um dado inquérito-crime) para conseguir por essa via sujeitar, por vezes durante anos a fio e uma vez mais sem controlo jurisdicional, determinados cidadãos a diligências gravemente invasivas da sua intimidade e privacidade.
Sucede que a forma habitual de o Ministério Público, sobretudo a sua hierarquia cimeira, reagir às críticas a este estado de coisas é, por um lado, invocar que essas críticas não passam de investidas e ataques contra a sua autonomia, vindas de amigos dos corruptos, em alturas em que a elite do Ministério Público estaria a atacar a corrupção e a alta criminalidade… Se as críticas vierem do interior da corporação, então, mesmo que aquelas estejam cobertas de razão, o caminho seguido é o da perseguição disciplinar, tal como sucedeu com a Procuradora-Geral da República Maria José Fernandes. Ao mesmo tempo, a tal elite tem a suma arrogância de se apresentar a si própria como um corpo superior, uma espécie de reserva moral da Nação ou até de proclamar ipsis verbis – tal como o fez o Vice-Procurador-Geral da República Carlos Teixeira no último Congresso do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público – que … “o Ministério Público acaba por funcionar como regulador ético-social”!…
5ª Como foi possível chegar-se a este ponto?
Parafraseando a Provedora de Justiça, Professora Lúcia Amaral, é muito importante compreender o que tornou possível chegar-se a este ponto. É que – como, aliás, cedo assinalaram autores como Vital Moreira e Gomes Canotilho ou Freitas do Amaral – o primitivo edifício constitucional do processo penal apontava para uma fase inicial do mesmo processo, a fase de instrução, que englobava as duas fases em que anteriormente se dividia a instrução (preparatória e contraditória), toda ela presidida por um juiz. Mas cedo[3] começaram as tentativas de, por via da legislação ordinária, criar uma fase “pré-instrutória” (inicialmente apenas para os crimes menos graves, puníveis com penas de prisão até 2 anos), tendente a retirar aos juízes de instrução o seu monopólio e a entregar a direcção do dito inquérito ao Ministério Público, involução esta que culminou com o actual Código do Processo Penal de 1987, o qual restringiu formalmente a instrução à antiga instrução contraditória e “desjudicializou” toda a fase de inquérito, entretanto tornada aplicável a praticamente todos os processos.
Entretanto, a 1ª Lei orgânica do Ministério Público[4] – que veio afirmar pela primeira vez um indefinido e não concretizado princípio da autonomia – tratou de lhe atribuir (aliás, em termos contrários à Constituição, que as concede em exclusivo aos juízes) funções materialmente jurisdicionais, tais como as de “velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis” e “fiscalizar a constitucionalidade das leis e regulamentos”! E numa extensiva e abusiva interpretação do referido conceito de “autonomia”, o Ministério Público até pretendia ter competência para a própria definição da política criminal, tendo sido necessário que a revisão constitucional de 1997 tivesse esclarecido[5] que lhe competia apenas “participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania”.
O que seguiu foi o esvaziamento progressivo – por via quer das leis, quer das práticas – da fase de instrução, que se converteu numa autêntica farsa (onde não se reexamina a actuação do Ministério Público ao longo do inquérito, não se repetem as diligências, mesmo as mal feitas, e onde todas as novas diligências podem ser indeferidas por despacho do juiz, que é irrecorrível), e do papel do juiz de instrução, que se tornou naquilo que ele manifestamente não é, ou não deveria ser, ou seja, num personagem inexistente, num polícia, ou até num mero auxiliar ou coadjuvante do Ministério Público.
A tudo isto somam-se ainda outras medidas como a criação dos DIAP – que passaram a permitir que o magistrado do Ministério Público que conduz o inquérito não tenha que ir a julgamento “dar a cara” por aquilo que fez ou deixou de fazer –, a criação do DCIAP – convertido num corpo de seres pretensamente superiores à generalidade dos cidadãos e arvorados em “reguladores ético-sociais” do nosso país – e o acesso (para não dizer “colonização”) das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça por magistrados oriundos do Ministério Público, transportando frequentemente para as funções e decisões jurisdicionais do Supremo as concepções e os “tiques” genéticos da corporação da qual provêm.
A amarga realidade é também a de que, por desconhecimento, por desvalorização ou até por receio do que lhes poderia advir de um Processo Penal, assim convertido num fácil e eficaz instrumento de recolha de informação sensível e privilegiada, mesmo que sem qualquer relevância jurídico-criminal, bem como num instrumento de abate de cidadãos incómodos e de adversários políticos, e, logo de verdadeira acção política (embora encoberta e até legitimada pela autonomia de tamanhos “reguladores ético-sociais”), a maioria dos titulares dos órgãos de soberania com legitimidade democrática electiva se foram calando e assim caucionando este estado de coisas. Provavelmente porque também sabem que uma manchete ou uma notícia num telejornal com, por exemplo, um excerto de uma escuta que se refira a factos (ou a pretensos factos…) que sejam social ou politicamente embaraçosos, mesmo sem constituir qualquer ilícito criminal, são mais letais do que uma bala verdadeira, sobretudo para quem é publicamente exposto pelas funções que exerce.
A verdade é que uma situação destas não pode deixar de ser qualificada como um ignominioso e autêntico – e de todo democraticamente inaceitável – sequestro, a que, a bem da Democracia, há que pôr cobro.
6ª – Que medidas deverão ser tomadas para pôr cobro a este sequestro?
Eis então algumas das medidas imediatas que, sem beliscarem, minimamente que seja, a autonomia do Ministério Público, creio que contribuiriam para começar a repor o normal funcionamento democrático da Justiça Penal:
– Instituição do regime de fiscalização jurisdicional (pelo juiz de instrução) de TODOS os actos do Ministério Público, em particular na fase de inquérito.
– Conhecimento exacto de quem é o titular e, logo, o responsável por cada processo, sobretudo no caso de equipas e de colaborações do Ministério Público.
– Sujeição de todas as medidas de coacção mais graves e de todos os actos processuais mais violentos e/ou intrusivos, pretendidos pelo magistrado titular do inquérito, não só à prévia concordância e co-responsabilização do superior hierárquico imediatamente superior, como também à prévia decisão do juiz de instrução criminal, à semelhança do que já sucede com os mandados de detenção europeus.
– Imposição de consequências processuais peremptórias para o incumprimento dos prazos de conclusão dos inquéritos (salvo casos devidamente justificados pelo juiz de instrução e sempre dentro de certos limites máximos de prorrogação).
– Modificação da actual composição do Conselho Superior do Ministério Público com vista a retirar a respectiva maioria aos membros da sua corporação.
– Atribuição a um organismo especial, dirigido por cidadão de reconhecida idoneidade, da competência para investigar os casos de violações de segredo de justiça, pelo menos em processos-crime.
– Clarificação absoluta de que a autonomia do Ministério Público é externa e que, internamente, ele se caracteriza essencialmente pela hierarquia, o que significa que cada magistrado do Ministério Público não pode fazer o que bem ou mal lhe aprouver sem ter que responder (hierarquicamente) perante ninguém, e que, externamente, o Procurador-Geral da República é o responsável máximo de tudo o que se passe com a corporação que dirige.
– Prestação regular de contas por parte do Procurador-Geral da República da actividade do Ministério Público perante os representantes do Povo (apenas em nome de quem os poderes soberanos podem ser exercidos), ou seja, perante a Assembleia da República.
Aquilo que se seguirá ao (re)lançamento deste urgente e importante debate, nenhum de nós tem hoje em dia o direito de ignorar. Decerto os “guardiões da regulação ético-social”, acolitados por uma tropa de comentadores e “especialistas” com ligações umbilicais às denominadas “fontes próximas dos processos” (e cuja ligação íntima ao Ministério Público se procura justificar com o argumento da fraca sanção jurídica e política aplicada aos prevaricadores e da consequente necessidade de uma “sanção pública”…), logo tratarão de apregoar aos quatro ventos a velha cantilena da “enorme pressão e crítica sobre investigações em curso, com protagonistas e responsáveis políticos a manifestarem uma clara vontade de conformar a actuação do Ministério Público a uma espécie de tutela política” (como afirmou, ipsis verbis, Adão Carvalho, o anterior Presidente do Sindicato do Ministério Público no XIII Congresso). E até pode mesmo suceder, é claro que por mera “coincidência”, que algum dos críticos seja entretanto objecto de uma busca, de uma detenção ou de uma “notícia” com a alegada transcrição de uma escuta ou de declarações de alguém…
Mas, na verdade, só há uma forma de responder adequadamente a este ambiente de verdadeira e intolerável chantagem: não ceder! Vamos, pois, a esse debate, com seriedade, responsabilidade, e sobretudo com a firmeza que a defesa dos mais básicos princípios democráticos nos impõe a todos!
António Garcia Pereira
[1] Art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa.
[2] Por força do art.º 2.º da Constituição.
[3] Desde logo com o Dec.-Lei 605/75, de 3/11.
[4] Lei nº 38/78, de 5/7.
[5] Art.º 219º, nº. 1 da Constituição.
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